28/06/2019

Historiografia, História das mulheres e trabalho

 

                Ao pensarmos nos estudos atuais de gênero, nos deparamos com muitos questionamentos sobre a relevância desses estudos para o conhecimento histórico e principalmente, como esses estudos são refletidos na consciência histórica. A partir dos estudos culturais de 1950 vemos uma ampliação nos objetos de pesquisas, nas fontes e nas metodologias empregadas na construção do conhecimento histórico. Com isso, os estudos de gênero, raça e sexualidade ganharam espaço dentro das discussões acadêmicas. O Movimento feminista foi determinante em despertar a consciência para a relevância das discussões entre os sexos e da participação da mulher na vida  em sociedade e na história como sujeita ativa.

            Contudo, devemos refletir como a inserção desses estudos feministas na história refletem e, se refletem na consciência histórica da sociedade sobre o papel da mulher. Discutir gênero e o papel da mulher é uma ação mais complexa do que simplesmente provar através de fontes que a mulher esteve presente na Revolução Francesa, que as cartas das mulheres farroupilhas revelam elementos importantes para compreender o período das revoltas regenciais no Sul e que mulheres eram queimadas em fogueiras na idade média acusadas de bruxarias por terem conhecimentos de ervas medicinais. O que de fato muda nossa concepção sobre a Revolução Farroupilha ao sabermos da participação da mulher? A simples inserção da mulher, embora seja um trabalho fundamental, não é suficiente para causar grandes rupturas teóricas e metodológicas no campo da história, muito menos seja capaz de proporcionar uma consciência histórica a questionar os papeis femininos na atualidade.

            Para tentar compreender essa problematização, é necessário rever as mudanças no campo da historiografia que oportunizaram tais discussões, analisando seus avanços e limitações para os estudos de gênero. Nesse sentido, cabe o pensamento sobre a possibilidade ou não de se chegar ao passado, ou como revisitar esse passado.

            O grande problema dessas discussões pode estar relacionado com os estudos culturais a partir da década de 50, que de certa forma aproximaram história, antropologia e sociologia de tal maneira que onerou uma ausência de identidade na disciplina de história. Tão pouco, abre possibilidade para se pensar um paradigma dentro da história.

            De fato, os estudos de gênero do período entre 50, 60 e 70 são marcados por um descritivismo metodológico que pouco contribui para a crítica proposta. Tentar descrever os passos das mulheres no passado são insuficientes para o que Hall (2003) afirma  

“o que importa são as rupturas significativas- em que velhas correntes de pensamento são rompidas, velhas constelações deslocadas, e elementos novos e velhos são reagrupados ao redor de uma nova gama de premissas e temas” (p.131)

 

            Ou seja, os estudos no modelo apresentado não propõe uma grande ruptura epistemológica para se pensar a participação da mulher na história. Isso pode estar relacionado ao fato da prevalência dos estudos totalizantes de história, busca de grandes narrativas, naquele período, acabaram por limitar esses estudos ao submundo da pesquisa em história, o qual feministas estudam mulheres, gays sexualidades e negros e imigrantes as questões étnicas. A esses estudos são dados valores pormenorizados diante das discussões maiores da história politica, econômica e social.

            Contudo, os estudos culturais inovam ao trazer a discussão sobre experiência como condições e/ ou modos de vida, presentes tanto em Willians quanto em Thompson (Hall, 2003) que entendem o propósito de cultura como “entender como as inter-relações de todas essas práticas e padrões são vividas e experimentadas como um todo em um dado período” (p.136). Assim, para problematizar as práticas sociais vividas e as condições dessas experimentações para as mulheres na história é preciso que elas estejam presentes nos discursos escritos da historia.

            Com isso, embora a presença da mulher nos textos propostos entre 50 e70 sejam desprovidos de críticas maiores e problematizações com o presente, eles são necessários na medida em que insere a mulher em um tempo histórico com narrativa própria.  Se pensarmos pela ótica de Ricoeur (2010) que coloca a sequência das gerações como elemento a qualificar ou definir o tempo histórico, colocar a mulher em determinados acontecimentos passados é dar uma ideia de “continuidade histórica” (p.186), ou seja, pensar que “estamos aqui hoje porque outrora estivemos la”.

            Outro fator a ser analisado é também a reformulação da escola francesa, buscando uma análise mais critica e uma busca epistemológica do estudo de história. Os estudos proporcionados por Marc Bloch e Lucién Febvre na década de 30, originando a Revista de Annales que depois seria compreendida como uma escola teórica, tinham por objetivo questionar a escola positivista que privilegiava uma história factual, fundada no acontecimento e nas grandes biografias, dando enfoque aos discursos políticos de forma descritiva, pois propunha certa “neutralidade” no trabalho do historiador.  Esse, a partir de documentos oficiais teria o papel de descrever os fatos, uma vez que as fontes documentais eram de fato, formas legítimas de se revisitar o passado e construir verdades.

            A proposta da revista de annales era justamente questionar essa verdade histórica, problematizando as fontes e seus conteúdos. Assim, seus fundadores acreditavam que era possível revisitar um acontecimento, mesmo que não se dispusesse de fontes escritas, possibilitando uma renovação metodológica na historiografia. Esses estudos são fundamentais para se compreender o avanço dos estudos feministas, uma vez que foi a partir dessa escola que a história passou a olhar para novos temas, novas fontes, enriquecendo a pesquisa histórica.

            Essa revista teve nas suas duas primeiras fases uma influência do marxismo sobre as pesquisas e nas duas fases seguintes, há um distanciamento do materialismo histórico e uma aproximação com os estudos culturais. Nesse momento, como já citado, história, antropologia e sociologia são estudadas como estudos complementares umas das outras, o que Passeron (1995) caracteriza como a impossibilidade de distinção entre essas ciências, as quais denomina “ciências históricas”.  Basicamente o que vai distinguir essas ciências é o método utilizado nas pesquisas.

            Porém, enquanto nesse período há uma necessidade de afirmação científica da Antropologia e da Sociologia, na História essa discussão é tangenciada. Esse fato, pode ser um dos elementos citados por Hall (2003) a caracterizar um esvaziamento identitário dos estudos históricos.

            Dentro desse momento, o surgimento dos estudos feministas, autenticamente acadêmicos, foram contemporâneos a esse processo de amadurecimento dos estudos da revista de annales. O fato dos estudos históricos sobre a presença feminina serem tão somente descritivos e não questionadores fazem parte desses ajustes metodológicos e epistemológicos da historiografia. Se na história prevalecia a intenção da inclusão da mulher nos acontecimentos passados, esses estudos foram pioneiros e fomentaram discussões no campo da antropologia e sociologia, que também tinham suas limitações teóricas ao analisar a participação da mulher na história baseada na dualidade público (homem)/ privado (mulher), natureza/cultura, sexo/ biologia, que restringiam a análise a especificidade feminina, deslocando a sua relação com o masculino.

            Assim, a partir da década de 80 surge a categoria Gênero, para suprir as deficiências dos estudos sobre as mulheres, entendendo-se como uma categoria analítica, a qual se estuda a mulher, a sexualidade, o corpo sempre em relação ao seu convívio social, seja com homens, crianças, idosos, compreendendo que não apenas a exclusão da mulher em determinados espaços sociais esta relacionado com a cultura machista ou com o patriarcado, mas que nessa cultura machista, o masculino também é culturalmente construído.

            O mesmo fenômeno de maturidade epistemológica ocorre com a historiografia francesa e a escola de annales a partir de 1990, como mostra Silva (2007). Dentro dessa renovação, a discussão de cientificidade é substituída pela visão de história como “um conhecimento revelado através de rastros e de vestígios” (p. 167). Essa renovação é de fato uma influencia do crescimento dos estudos da micro história italiana, história social inglesa e dos estudos da escola alemã que colocam em cheque a hegemonia da escola de annales. Assim, o objetivo dessa renovação é romper com as “certezas metodológicas”(p.169) dos annales, buscando uma história crítica e problematizadora, reinventando a prática do historiador.

            Os estudos se voltam para a busca de objetividade, realismo e uma verdade que infira uma legitimidade a identidade da História, que são percebidas não somente nas pesquisas, como também no texto escrito, pois a questão textual também é criticada. “Em síntese, a “guinada crítica” abre possibilidade de um espaço teórico próprio da história”(p.173).

            Nos resta saber como essa renovação da historiografia francesa irá se refletir nos estudos de gênero, de forma que possibilite uma consciência histórica que questione a mulher e o homem em sua diversidade de papéis sociais.  Não se trata  de uma inversão, “agora é a vez da mulheres”, mas de questionar a pesquisa histórica no campo das desigualdades de gênero e como a historiografia pode promover uma reflexão sobre a significação simbólica das pesquisas que inserem a mulher no passado histórico em um tempo próprio, mas sempre em relação ao seu contexto.  Chega de história dos excluídos, história das mulheres, história da sexualidade, e pensemos em uma história que contemple essas questões dentro da complexidade que são impostas e com a criticidade necessária.

            A partir dessa análise mais geral dos avanços das escolas teóricas que influenciam nossa historiografia, passamos a pensar especificamente as relações de trabalho no Brasil e a participação da mulher no trabalho. No campo da história do trabalho, conforme aponta Perrot (2005), devemos o estudo da mulher no trabalho as feministas marxistas, pois inicialmente, os estudos marxistas sobre o trabalho teriam formatado as categorias do feminismo (p.150). Dessa forma, no lugar dos estudos sobre o “capital”, classe, raça, luta dos sexos, passaram lentamente a substituir o capital como objeto de análise, preocupando-se mais com práticas sociais do que representações.

            No início desses estudos, vale ressaltar que esse “feminismo materialista” fundava-se na alise de dualismos, o público e o privado e os determinados papéis de homens e mulheres na sociedade. A industrialização e a economia capitalista transformam esse cenário no campo do trabalho, uma vez que é crescente o contingente de mulheres trabalhando em fábricas. Mas ainda sim, os deveres domésticos são atribuições das mulheres.

No campo da historiografia brasileira mais contemporânea, tem-se abordado outras questões na relação empregado- patrão e ampliando a categoria trabalho, para além do operariado fabril. Nesse sentido, vemos os estudos sobre a negociação entre escravos e senhores, mostrando que o trabalho escravo tinha relações muito complexas ainda pouco exploradas. Os estudos sobre etnia estão relacionados também com uma historiografia onde as escolas teóricas, fontes e metodologias interagem para uma abordagem mais abrangente dos temas.

Da mesma forma, o estudo sobre o trabalho relacionado a história das mulheres também sofreu uma renovação. Assim como coloca Touraine (2007), a crítica que se faz na atualidade relativo aos estudos primeiros sobre a história das mulheres e do trabalho feminino, coloca-se principalmente no sentido de que há uma vitimização muito grande da mulher, como se ela fosse passiva diante do processo histórico que vivenciava. Como se a mulher fosse totalmente desprovida de poder, ou que o “seu poder” era administrado no interior do lar, ou seja, a mulher só tinha alguma autonomia no privado, mas que era uma autonomia tutelada pelos homens.

Na abordagem inicial, público e privado são bem distintos e não se correlacionam. E as relações de gênero são baseadas nas relações de opressores e oprimidas. Nesse sentido, assim como coloca Perrot (2005), em sua obra “As mulheres ou os silêncios da história”, a presença da mulher nos movimentos grevistas mostra um campo de atuação em que as mulheres se igualam aos homens na luta pelos direitos trabalhistas. Outra abordagem atual, fala sobre a questão o trabalho “reprodutivo”, ou seja, o trabalho realizado por mulheres no lar, necessários para a reprodução do capitalismo, mas não remunerado. Assim, o publico e o privado são categorias que misturam, seja no trabalho das mulheres nas fábricas, seja na máquina de costura, no fogão ou no tanque.

Para uma análise mais ilustrativa desse argumento, citamos o filme “Eles não usam Black tie” de 1981, dirigido por Leon Hirszman, baseado na peça teatral de  Gianfrancesco Guarnieri. O filme trata de um momento muito delicado na vida de Tião ( Carlos Alberto Riccelli), operário de uma indústria em São Paulo, filho de um líder sindical, Otavio (Gianfrancesco Guarnieri), que descobre que sua namorada está grávida em meio a negociações de greve. Com medo de perder o emprego, Tião fura a greve, liderada por seu pai, o que acarreta em atritos familiares e profissionais. O filme mostra sobretudo as precárias condições de moradia e a violência cotidiana de moradores de uma favela, que tiram seu sustento do trabalho fabril.

Nesse contexto, destaca-se a participação de duas mulheres nesse movimento. A dona de casa Romana, vivida por Fernanda Montenegro e a operária Maria, vivida por Bete Mendes. Ambas as personagens mostram os diferentes papéis da mulher. Maria, uma jovem operária, vive com os pais e o irmão mais novo. O pai alcoólatra e a mãe dona de casa dependem do seu trabalho para o sustento da família. Romana, por outro lado, é uma dona de casa, matriarca da família principal, mas que contribui para o trabalho fabril á sua forma. Na sua fala inicial, quando é acordada pelas conversas de Tião, Maria e Otavio na sala diz: “ que calma o que!!! Quem levanta daqui a pouco sou eu!!! Quem faz café sou eu!!! Quem acorda todos vocês sou eu”.

Ai, se atribui a importância do trabalho doméstico na reprodução da vida operária. E a mulher que prepara os alimentos, lava as roupas, cuida da casa, acorda os homens para o trabalho. Mas mesmo sendo uma trabalhadora do lar, Romana não se mostra alienada a situação do trabalho fabril. Faz sempre referências de cuidados diante do movimento grevista, como quando os homens vão pra fabrica após a deliberação do sindicado de início de greve e ela alerta o marido e o filho: “se chegar a polícia corre!!! Está com o endereço no bolso? Assim se acontecer alguma coisa, agente fica sabendo logo!!!”

Já Maria, mostra outra face da mulher, uma mulher operária, grávida e que se prepara para o casamento. Contudo, não se mostra submissa ou dependente do noivo. A greve acaba sendo um divisor de água no relacionamento dos dois. No dia anterior a greve, Tião faz recomendações para Maria não se envolver no movimento: “eu to mandando.... não quero mulher minha nesses negócios!!” e Maria responde: “que negócio é esse de mandar? Eu faço o que acho certo... não to fazendo nada errado!! .Maria, adere ao movimento grevista, enquanto Tião continua trabalhando, fato que faz ele ser expulso de casa pelo pai e também ocasiona o rompimento do noivado com Maria, pois essa sente-se traída.

Embora esse seja um pequeno relato, pode-se perceber como essas diferentes mulheres articulam seu poder tanto no público, quanto no privado. Em suma, este breve texto buscou problematizar e sensibilizar o pesquisador para uma interdisciplinaridade no campo das correntes teóricas da historiografia, mostrando avanços e retrocessos nas pesquisa sobre História das mulheres, gênero e trabalho.

 

Referências:

 HALL, Stuart.  Da diáspora, identidades e mediações culturais. Brasília, Editora: UFMG, 2003.

PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005.

RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. São Paulo, Editora: WMF Martins Fontes, 2010.

SCOTT, Joan."Gênero: uma categoria útil de análise histórica". Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 16, n. 2, p. 5-22, jul./dez. 1990.

SILVA, Helenice Rodrigues da. A renovação historiográfica francesa  após a “guinada crítica”. IN: Historiografia Contemporânea em perspectiva crítica, MALERBA, Jurandir e ROJAS, Carlos Aguirre (org.), Bauru, São Paulo, EDUSC, 2007.

TOURAINE, Alain. O mundo das mulheres. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

Baixar artigo

Volume/Edição

Autores

  • PEIXOTO, Priscila dos S.;

Páginas

  • 1 a 8

Áreas do conhecimento

  • Nenhuma cadastrada

Palavras chave

  • História, Gênero, Historiografia

Dados da publicação

  • Data: 28/06/2019
Assine

Assine gratuitamente nossa revista e receba por email as novidades semanais.

×
Assine

Está com alguma dúvida? Quer fazer alguma sugestão para nós? Então, fale conosco pelo formulário abaixo.

×