A disciplinarização de crianças e adolescentes e a consolidação do Capitalismo
A disciplinarização de crianças e adolescentes e a consolidação do Capitalismo
Solange Prado
Resumo: O ensaio busca apresentar que a questão do abandono de crianças e adolescentes é um problema histórico que atormenta a classe governante e os mais endinheirados desde o final da Idade Média, mas ao mesmo tempo auxiliou na consolidação do capitalismo, como modo de produção dominante tanto na Europa quanto no Brasil.
Palavras-chave: abandono de crianças; disciplinarização para o trabalho; capitalismo.
Atualmente, há unanimidade em afirmar o alto índice de crianças abandonadas por todo o país. Desde o século XIX esse problema é uma constante e nossos governantes buscam uma solução que possa erradicar o problema, mas, o que quase sempre é ignorado e mantido de forma velada, é a repugnância da elite em relação àqueles que vivem nas ruas e as razões para a efetivação do abandono de crianças pelos seus familiares desde o fim da Idade Média.
O (re)nascimento das cidades a partir do século XII na Europa e, com ele, o surgimento da burguesia e o nascimento de um novo modo de produção, o capitalismo, alterou para sempre a paisagem social e histórica do Ocidente. A aglomeração de potentados e despossuídos nas áreas urbanas permitiram, para o bem ou para o mau, o surgimento de personagens que não agradariam (e, ainda não agradam) à elite burguesa e seu grande aliado, o Estado.
As péssimas condições de sobrevida nos campos europeus, especialmente no decorrer do XVII e XVIII, fez com que muitas crianças fossem abandonadas nas cidades e ali deixadas à própria sorte. Trindade (1999) nos apresenta, em seu artigo, que o mesmo ocorre no Brasil a partir do XIX.
A cidade, polo de ostentação e poder, torna-se local também de demonstração de boa educação e conduta, sobretudo nas ruas. O abandono de crianças recém-nascidas, fosse para se livrar do rebento, fosse pela incapacidade dos pais de cuidar, fez nascer no limiar do XIX um dos primeiros grandes problemas sociais que persistem até a atualidade.
De acordo com a pesquisa de Trindade (1999), enjeitar recém-nascidos era um refúgio para mulheres que queriam evitar escândalos morais, devido a uma gravidez indesejada, e, ainda uma maneira de prevenir que a dita criança sofresse com infâmias por ser um(a) bastardo(a). Além disso, atitude como essa seria também uma forma de libertar o pequeno ser da miséria e da fome. Abandonar uma criança indesejada ou não, portanto, era uma garantia de preservar os bons costumes ou garantir a sobrevivência da criança.
Era comum também que mães que ficavam doentes ou que não tinham capacidade de amamentar abandonassem seus filhos na “roda dos expostos”, dando a esses a possibilidade de sobrevivência. Muito embora, esse abandono não era garantia de sobrevida, já que o índice de mortalidade infantil nesse período era bastante elevado.
A prática da caridade cristã, preconizada pela misericórdia[1], fez nascer tanto na Europa quanto no Brasil, instituições especializadas em acolher aqueles que eram enjeitados por suas famílias. Nessas instituições, as crianças deveriam ser preparadas para uma vida útil, produtiva e honrada.
A criação de instituições de acolhimento de enjeitados, longe de resolver o problema do abandono, acabou se tornando uma instituição que lembrava a todos, a depravação da moral e dos bons costumes. À medida que o capitalismo avançava e se firmava como modo de produção hegemônico, o número de abandonados crescia, tornando-se um problema para a burguesia e para o poder público, tanto no que tangia aos bons costumes quanto na questão da estética de suas ruas e outros ambientes públicos.
A fim de erradicar esse problema, medidas foram tomadas, na Europa, como a criação de reformatórios, jardins de infância, creches e escolas que deveriam disciplinar as crianças modelando-as para a convivência em sociedade. Nas escolas, as crianças deveriam ser preparadas e educadas para o trabalho por meio do trabalho. Ao mesmo tempo em que as crianças eram educadas, a burguesia se valia de mão de obra barata e obediente.
Tais medidas nos reportam a Michel Foucault quando mostrou-nos que a relação soberano-súdito recobria a totalidade do corpo social. Para o filósofo é no período do XVII e do XVIII que
ocorre um fenômeno importante (...), a invenção de uma nova mecânica de poder, com procedimentos específicos, instrumentos totalmente novos e aparelhos bastante diferentes, (...). Este novo mecanismo do poder apoia-se mais nos corpos e seus atos do que na terra e seus produtos. É um mecanismo que permite extrair dos corpos tempo e trabalho mais do que bens e riqueza. (FOUCAULT, 1979, p. 187)
A consolidação do capitalismo não tinha mais volta, os corpos seriam dominados e controlados por um mecanismo que funcionaria em cadeia!
No Brasil, as conjunturas sociais, políticas e econômicas do XIX, exigiram, segundo Moura (1999), soluções muito próximas àquelas vividas na Europa séculos antes. A abolição gradual da escravatura, a migração de europeus, a paulatina decadência do Império, a mão de obra livre desvinculada da terra e a não absorção desse contingente nas lavouras do café, fizeram surgir, tanto na cidade de São Paulo quanto no Rio de Janeiro, uma pletora de pessoas, especialmente crianças e adolescentes, sem ocupação que viviam a vaguear pelas ruas.
A rua, palco da urbanidade é entendida como um espaço público no qual o direito de ir e vir é plenamente realizado, mas, também, um local de mal feitores e desregramentos. Esse espaço representaria para crianças e adolescentes, segundo alguns legisladores, médicos e higienistas, um fator de risco e agressão aos bons costumes além de ser um espaço que aviltava a integridade física e moral dos que ali viviam.
No Brasil, vários foram os veículos de mídia impressa que denunciavam a situação de penúria de crianças e adolescentes pelas ruas, especialmente na cidade de São Paulo. Em vista disso e, considerando que era uma “pátria em gestação” e que as crianças e adolescentes representavam o futuro da nação, políticos representantes tanto da burguesia industrial quanto dos cafeicultores brasileiros, elaboraram uma série de leis, que a exemplo das Leis Sanguinárias da Inglaterra do XVII, tentaram coibir a convivência e estadia desses desvalidos nas ruas.
A instalação do capitalismo no Brasil, um país mono-agrário-exportador com um quinhão de ex-escravos e com as cidades abarrotadas de expropriados, exigiu medidas severas que fossem capazes de disciplinar e controlar aqueles que tinham a rua como espaço de sobrevivência. A título de exemplo, o Código Criminal de 1830 é um claro mecanismo de repressão à vadiagem e à mendicância.
Além da legislação coercitiva àqueles que não tinham trabalho, crianças e adolescentes que viviam na e da rua foram inseridos no processo de produção para, por meio de uma atividade útil, “incorporarem hábitos de trabalho e aprender um ofício”. O trabalho e a disciplina, por ele exigida, seria uma solução para os males da rua. Dentro das fábricas e oficinas, esses jovens seriam controlados e disciplinados.
Semelhante às workhouses da Inglaterra do XVII, as oficinas e as fábricas saneariam as ruas e formariam um exército industrial de reserva. A violência infringida às crianças e adolescentes, como castigos físicos e excessivas jornadas de trabalho nesses ambientes, era justificada pela necessidade de disciplinarização de seus corpos e controle de suas vidas.
Embora com uma imagem associada à fragilidade, fraqueza e ingenuidade, crianças e adolescentes eram encarados por políticos, médicos higienistas, enfim por toda a sociedade, como adultos em formação, como cidadãos que estavam sendo preparados para a vida em sociedade.
Neste contexto, considerando a realidade hoje vivida, não é difícil concluir que a marginalidade social a que crianças e adolescentes foram, e ainda são, submetidos e os vários mecanismos engendrados para por fim no problema no XIX, nada ou pouco ajudaram. Não é difícil inferir ainda, que todo esforço para disciplinarização do corpo e da mente desse contingente de marginalizados auxiliaram muito mais à consolidação do capitalismo no Brasil do que propriamente aos milhares de crianças e adolescentes que ainda vivem nas e das ruas.
REFERÊNCIA
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 12 ed. Rio de Janeiro: Graal. 1979
MOURA, Esmeralda B. B. Meninos e meninas de rua: impasse e dissonância na construção da identidade da criança e do adolescente na República Velha. Revista bras. História, v.19, n. 37. São Paulo, Set.1999.
TRINDADE, Judite M. B. O abandono de crianças ou a negação do óbvio. Revista bras. História, v.19, n. 37. São Paulo, Set.1999.
[1] Citada em várias passagens bíblicas, a misericórdia se divide em dois aspectos, as temporais e as espirituais. São obras de misericórdia temporais: dar de comer a quem fome; dar de beber a quem tem sede; vestir os nus; dar pousada aos peregrinos; visitar os enfermos e encarcerados; remir os cativos e enterrar os mortos. As obras de misericórdia espirituais são: dar bom conselho; ensinar os ignorantes; castigar os que erram; perdoar as ofensas; consolar os aflitos; sofrer com paciência as fraquezas do próximo e orar pelos vivos e defuntos.