09/10/2025

A Filosofia do Cristianismo em Agostinho: O Existente e o Amor como Coração do Pensamento

                                                                                                                                                                 Ivan Carlos Zampin;

Resumo

O presente artigo propõe uma análise filosófica da tradição cristã a partir do pensamento de Agostinho de Hipona, enfatizando a centralidade do existente e do amor, especialmente a dimensão do coração como locus da experiência de Deus. Por meio do diálogo entre as matrizes greco-cristãs e da interlocução entre fé e razão, destaca-se o papel da interioridade, a doutrina do amor e o exercício existencial que perfazem o caminho da “beata vita” a vida beatificada no cristianismo. Recorrendo a autores como Heidegger e à leitura direta das Confissões de Agostinho, busca-se evidenciar a síntese entre afeto e intelectualidade, bem como o entendimento do mal como desenraizamento do coração e distanciamento do amor divino.

Palavras chave: Agostinho de Hipona. Filosofia Cristã. Interioridade. Amor. (Caritas). Existência Humana. Beata Vita. Fé e Razão. Confissões. Metafísica do Amor. Antropologia Filosófica

 

Introdução

A filosofia cristã, em seus primórdios, comprovou uma profunda reconfiguração do pensamento religioso e filosófico ocidental. O nascimento de Jesus e a conversão de Paulo foram eventos que lançaram as bases de uma nova cosmovisão, centrada no amor universal e no reconhecimento de Deus encarnado. O cristianismo não apenas reinterpreta elementos da tradição grega, mas promove um giro ontológico, no qual a experiência da existência humana se torna permeada por uma dinâmica afetiva e espiritual singular, conforme destaques Agostinho de Hipona (SANTO AGOSTINHO, 2001).

Este giro representa uma verdadeira revolução antropológica, onde o ser humano deixa de ser compreendido principalmente como um "animal racional" à maneira aristotélica, para ser concebido como um "ser desejante" em busca de sua plenitude em Deus. A máxima agostiniana "Fizeste-nos para Ti, Senhor, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousar em Ti" (SANTO AGOSTINHO, 2001, p. 21) sintetiza essa nova compreensão do humano como ser fundamentalmente aberto à transcendência. Neste contexto, a tradição filosófica grega, especialmente o platonismo e o neoplatonismo, é ressignificada à luz da revelação cristã, criando uma síntese original que marcaria definitivamente o pensamento ocidental (GILSON, 2006).

Agostinho de Hipona (354-430 d.C.) emerge como figura central neste processo de assimilação criativa. Sua obra representa não apenas o ápice da patrística, mas constitui um sistema filosófico-teológico de extraordinária coerência e profundidade. Partindo de sua experiência pessoal narrada nas "Confissões" - obra singular que inaugura gênero autobiográfico na literatura ocidental -, Agostinho desenvolve uma filosofia da interioridade que coloca o existente concreto e sua experiência subjetiva no centro da reflexão filosófica (REALE, 1990).

Este artigo busca explorar como Agostinho articula essa dinâmica, colocando o existente concreto e sua experiência interior do amor no centro do projeto filosófico. A hipótese que orienta nossa investigação é que o pensamento agostiniano realiza uma fusão original entre a tradição metafísica grega e a novidade cristã, estabelecendo o "coração" como locus privilegiado do conhecimento de Deus e de si mesmo. Para Agostinho, o amor (caritas) não é um mero sentimento acessório, mas a própria estrutura ontológica que move o ser humano em direção à sua realização plena.

A metodologia adotada combina a análise textual das obras agostinianas, particularmente das "Confissões", com a recepção contemporânea de seu pensamento por autores como Martin Heidegger e Paul Ricoeur, que reconheceram na filosofia agostiniana antecipações importantes de temas fundamentais da filosofia do século XX, como a temporalidade, a memória e a identidade pessoal (RICOEUR, 1994).

Referenciais Teóricos

A análise parte das contribuições dos primeiros padres da Igreja, como Orígenes e Tertuliano, fundamentais para a construção teórica do cristianismo. Destaca-se a apropriação da filosofia grega nessa elaboração, resultando em um desafio hermenêutico: separar o pensamento genuinamente helênico do filtro cristão, como aponta o neoplatônico Numênio ao afirmar que “Platão é um Moisés falando em grego” (Numênio apud MARCONDES, 2015, p. 112). Esse contexto complexo é revisitado à luz das reflexões de Agostinho e da recepção contemporânea de Heidegger, para quem o olhar interior de Agostinho inaugura uma fenomenologia da existência (HEIDEGGER, 1999). A base deste estudo assenta-se, portanto, no diálogo entre a fonte primária agostiniana e a interpretação filosófica moderna.

Desenvolvimento

A singularidade da filosofia agostiniana está na articulação entre a vida teórica e a vivência existencial. Para Agostinho, a busca por Deus é, ao mesmo tempo, uma busca por si mesmo, em um dinamismo de interiorização que altera toda a percepção do real. Ele afirma que “não há vida feliz sem estar mergulhada na busca de Deus, não há vida feliz sem estar em Deus, imersa e entregue à dimensão de Deus, na confiança e no amor” (SANTO AGOSTINHO, 2001, p. 28).

O exercício confessional agostiniano não é mera esperança de absolvição, mas um empreendimento de ressignificação da própria existência na direção de Deus. A conversão da alma implica a transformação do estado de decadência existencial em bem-aventurança espiritual. Heidegger (1999) comenta que, para Agostinho, a memória afetiva e o recolhimento no coração especificam a experiência radical e inaugural da busca pelo sentido da vida, transformando a solidão em ambiente de escuta e de conversão.

A oposição entre vida interior e exterior expressa, segundo Agostinho, a diferença entre o mundo (realidade exterior) e a vida (realidade que pulsa no coração). Assim, a busca por Deus não é por um objeto exterior, mas por um horizonte de compreensão que transcende o mero visível: “A busca por Deus é busca de horizonte de compreensão, ou seja, perpassa nosso modo de ser, nos atravessa e nos permite que toda e qualquer experiência se abra enquanto é como Deus” (SANTO AGOSTINHO, 2001, p. 33).

Nesse cenário, o amor emerge como pathos (apelo à emoção em um discurso, obra de arte ou escrita, buscando provocar sentimentos como compaixão, empatia ou tristeza no público) e princípio organizador da existência cristã. O cristão é aquele que, tomado no íntimo do seu coração por uma presença transcendente, realiza-se como existente em busca de uma vida beatificada a “beata vita”. Para Agostinho, fé e conhecimento não são opostos, mas complementares: “compreender para crer” é o princípio regulador da interioridade cristã (MARCONDES, 2015).

A experiência do mal, por sua vez, é entendida como desenraizamento, como excesso secundário ao exterior, que afasta o homem de seu próprio coração e, portanto, de Deus. "O Mal, em Agostinho, é uma super valorização de si mesmo [...] Quando o homem escolhe os caminhos da desmedida, do enlevo de si mesmo afastado, se de Deus. Quando escolhe a Deus e sucumbe ao lugar do coração, buscando-se não como um 'eu solipsista', mas sim a um eu que se dissolve em Deus [...], assim acontece o Bem, isto é, o amor em sua expressão última" (SANTO AGOSTINHO, 2001, p. 34).

Aprofundamento: Interioridade, Memória e a Ordenação do Amor

A interioridade agostiniana, portanto, não é um mero refúgio psicológico, mas o próprio locus da metafísica. Ao voltar-se para dentro, o homem não encontra um vazio subjetivo, mas a pista sonora da Presença divina. A famosa máxima "Noli foras ire, in teipsum redi; in interiore homine habitat veritas" ("Não queiras sair para fora, volta a ti mesmo; no homem interior habita a verdade") confere à subjetividade uma dignidade ontológica inédita. A verdade não é mais apenas um correlato objetivo da razão, como no ideal grego, mas uma realidade que se experimenta e se vive na profundidade do espírito. Esta é uma das contribuições mais radicais de Agostinho, ou seja, “a verdade é Deus, e Deus é encontrado na intimidade do ser”. Este movimento de interiorização é, simultaneamente, um movimento de transcendência, pois o "homem interior" que se descobre é um ser criado à imagem e semelhança de Deus, portando em si as "marcas" do Criador.

É nesse contexto que o conceito de memória (memoria) adquire uma dimensão crucial. Para Agostinho, a memória não é apenas o arquivo do passado, mas a própria vastidão da consciência, o palácio da mente onde se armazenam não só imagens sensíveis, mas também as verdades eternas, os números, os princípios da lógica e, sobretudo, a lembrança de Deus. A busca por Deus nas Confissões é, em grande medida, uma busca na memória. Agostinho pergunta-se onde encontrou a Deus para poder buscá-lo. A resposta é que O encontrou em sua memória, não como uma recordação entre outras, mas como a luz que torna possível toda recordação e todo conhecimento. Deus é, assim, "mais íntimo a mim do que eu mesmo", a realidade fundante que sustenta o próprio ato de existir e de conhecer. Esta análise antecipa, de forma genial, questões centrais da filosofia da mente.

O amor (caritas) é o princípio dinâmico que organiza e direciona essa busca interior. A antropologia agostiniana é, fundamentalmente, uma antropologia do desejo. O coração humano é um abismo de desejo, uma inquietude (inquietum cor nostrum) que só encontra repouso em Deus. Este desejo, porém, pode ser desviado. Daí surge a famosa doutrina agostiniana dos dois amores, que estrutura sua filosofia da história em A Cidade de Deus: o amor a Deus até o desprezo de si (caritas) e o amor a si mesmo até o desprezo de Deus (cupiditas). Toda a ética e toda a dinâmica existencial se resumem nesta ordenação do amor. O pecado, portanto, não é primariamente uma transgressão legal, mas uma desordem afetiva, um desvio do desejo que, em vez de se dirigir ao Bem Sumo (Deus), apega-se a bens particulares (as criaturas) como se fossem fins absolutos.

Esta concepção permite a Agostinho uma compreensão profundamente existencial do mal. O mal não é uma substância, uma realidade positiva em si mesma ideia que Agostinho herdou do neoplatonismo e usou para refutar o maniqueísmo. Se o mal fosse uma substância, significaria que Deus, o Sumo Bem, teria criado algo mau. A solução agostiniana é a de que o mal é privação (privatio boni), uma corrosão do bem. É como uma doença na saúde ou uma treva na luz; não existe por si, mas como carência de um bem que deveria estar presente. No plano moral, o mal é a escolha de um bem menor em detrimento do Bem Maior. É a vontade humana, livre, mas falível, curvando-se sobre si mesma (incurvatio in se ipsum) e preferindo o usufruto egoísta ao dom gratuito do amor divino. O mal é, em última instância, um amor que se tornou desenraizamento, perdendo sua conexão com a Fonte que lhe dá sentido e direção.

A superação do mal e a realização da beata vita passam, então, por uma reeducação do desejo, uma ascese do amor. Esta ascese não é uma negação do mundo, mas uma transformação do olhar. As criaturas, que são boas por terem sido criadas por Deus, devem ser amadas não como fim último, mas como sinais (vestigia) que apontam para o Criador. É o que Agostinho chama de "usar" (uti) o mundo para "gozar" (frui) de Deus. A fé, nesse processo, não é a antítese da razão, mas sua condutora. O lema "crede ut intelligas" ("crê para compreender") sintetiza esta relação simbiótica. A fé ilumina a razão, abrindo-a para verdades que transcendem sua capacidade inicial de apreensão, e a razão, por sua vez, busca penetrar, com suas ferramentas, no conteúdo da fé, em um movimento de aprofundamento contínuo. A inteligência é, assim, um ato de amor, um desejo de compreender aquele que já se ama pela fé.

A contribuição de Heidegger (1999) ganha relevo aqui. Quando o filósofo alemão vê em Agostinho uma "fenomenologia da existência", está reconhecendo nele um precursor da análise do Dasein (“ser-aí” ou “ser-no-mundo”). A inquietude do coração, a preocupação (cura) com a própria existência, a temporalidade vivida (passado da memória, presente da atenção, futuro da expectativa) e a busca por um sentido autêntico ante a facticidade da vida são temas agostinianos que ecoam fortemente em Ser e Tempo. A "conversão da alma" de que fala Agostinho pode ser lida como uma antecipação da chamada de Heidegger à autenticidade, a uma resolução de existir a partir de sua própria finitude e abertura para o Ser.

O ato de fé, longe de ser adquirido subitamente, exige exercício e ascese, numa disposição permanente de abertura à gratuidade da vida. A cristã agostiniana, desse modo, propõe um itinerário de autoconhecimento no qual a existência se desenvolveu no amor, pela escuta do coração, na luta constante contra o mal e na esperança de redenção: “convém ressaltar que dizer que o conhecimento deve andar ao lado da fé, na formação de um espírito legitimamente cristão, não implica dizer que somente pode ser cristão aquele que pode se cercar de erudição [...] Sua fé o remover da privação de si mesmo, pois em tudo que conhece e vê, é a ele mesmo que busca, ao seu coração, no qual e desde o qual Deus se mostra” (SANTO AGOSTINHO, 2001, p. 35).

Conclusão

A síntese agostiniana entre afeto e razão, existência e amor, fundou as bases de uma antropologia filosófica cuja atualidade permanece vibrante. Ao privilegiar a interioridade e o coração, Agostinho não apenas cristianizou o legado grego, mas operou uma verdadeira revolução no pensamento ocidental, deslocando o eixo da especulação objetiva para a experiência subjetiva do divino. A felicidade última (beata vita) não é mais a contemplação impessoal de uma ideia, mas o encontro pessoal e amoroso com um Deus que é Amor.

Esta perspectiva oferece uma resposta profunda aos dilemas existenciais contemporâneos, marcados frequentemente pelo vazio de sentido e pela fragmentação do sujeito. A filosofia agostiniana propõe um caminho de unificação: unifica o intelecto e o afeto, mostrando que o conhecimento mais profundo é sempre um conhecimento amante; unifica o homem consigo mesmo, ao convidá-lo a uma jornada de autoconhecimento que é, simultaneamente, conhecimento de Deus; e unifica a existência, ao ordenar todos os seus aspectos memória, vontade, inteligência, amor em direção a um fim último que lhe confere sentido. A "gratuidade da vida", tão enfatizada por Agostinho, é a descoberta de que a existência não é um fardo absurdo, mas um dom a ser acolhido e respondido no amor. Nesse sentido, o pensamento de Agostinho permanece não apenas como um monumento da tradição cristã, mas como um farol que continua a iluminar a busca humana por uma vida verdadeiramente plena e significativa.

Referências Bibliográficas

CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o Homem. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.

GILSON, Étienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

HEIDEGGER, Martin. Introdução à fenomenologia da religião. São Paulo: Paulus, 1999.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 7. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2015.

REALE, Giovanni. História da Filosofia Antiga e Medieval. São Paulo: Loyola, 1990.

RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Campinas: Papirus, 1994.

SANTO AGOSTINHO. Confissões. Trad. Maria Cristina de Souza Lima. 5. ed. São Paulo: Paulus, 2001.

STEIN, Edith. A Ciência da Cruz. São Paulo: Loyola, 2013.

 

 

Ivan Carlos Zampin: Professor Doutor, Pesquisador, Docente no Ensino Superior, Ensino Fundamental, Médio e Gestor Escolar.

 

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