03/09/2011

A possibilidade de reflexos penais da nova interpretação

A possibilidade de reflexos penais da nova interpretação dada à OJ-SDI1-199 - Jogo do Bicho

Aparecido Sebastião de Oliveira

Bacharel em Direito pela Fadap - Tupã

Advogado 1995/2005

Professor de Cursos para concursos no CIC – Tupã 2000/2004

Servidor do TRT9

Professor cadeira de Processo do Trabalho no curso de Direito da ISULPAR – Paranaguá

Professor de Direito Trabalhista no curso de Administração da ISULPAR – Paranaguá

Mestre em Direito pela UNIVEM – Marília.

Paranaguá - 2011

 

 

A possibilidade de reflexos penais da nova interpretação dada à OJ-SDI1-199 - Jogo do Bicho

 

O Jogo do Bicho é um tipo de loteria popular que foge ao controle do governo federal. O governo brasileiro ainda não conseguiu um meio para controlar as apostas e a arrecadação, é verdade que houve tentativas tal como os bilhetes de loteria (praticamente desconhecidos da grande massa), essa tentativa não conseguiu atingir o público do jogo do bicho e muito menos captar o dinheiro que corre nesse jogo.

O jogo do bicho é de conhecimento popular, mas, a guisa de curiosidade, pesquisamos e aqui relatamos que é semelhante a loteria federal com peculiaridades, uma delas é que o jogador pode apostar qualquer valor, outra é que há uma relação de confiança entre o jogador e o apontador e entre o apontador e o dono da banca. É certo que campeia a corrupção, financiamento de campanhas eleitorais, homicídios, assalto a banco, lavagem de dinheiro e diversos outros delitos, mas é certo também que entre o apostador final e o dono da banca campeia a confiança, afinal, o apostador somente fica com um bilhetinho, escrito em papel carbono, tomado geralmente de um apontador que não detém recursos financeiros para bancar a aposta. E tal qual nos demais jogos quanto maior o valor apostado em uma sequência numérica (milhar, centena, dezena, etc), tanto maior será o premio. Há uma flexibilidade infindável de possibilidades de aposta, a começar nos centavos, o jogador é livre para escolher o valor a apostar o seu número da sorte nas 10.000 possibilidades disponíveis para cada bicho em cada sorteio.

Exemplo, um jogador que aposte R$1,00 na milhar do avestruz, e acerte na cabeça, (conhecido assim por ser o primeiro premio da lista), caso acerte a inteira (os 4 números) ele ganha R$3.000,00 . Caso tivesse apostado R$0,50 e acertado, o apostador ganharia R$1.500,00. Todas as bancas tem uma tabela de valores que são apresentados aos apostadores. É óbvio que, para falar de jogo de bicho, tive que fazer pesquisa de campo, além de que, por ser de maciça penetração popular a “fezinha” (como é conhecida a aposta popular) é praticada pela mãe deste estudioso desde muito tempo.

Como é cediço, apesar de sua imensa popularidade e de ser tolerado pelo Estado, o jogo do bicho é considerado uma contravenção penal e todas as pessoas que o praticam ou o promovem a qualquer título são passíveis de punição pela Justiça e não duvidamos que talvez possa, algum puritano, até tentar atribuir a esse autor a prática de apologia ao crime.

A história do Jogo do Bicho[1], jogatina tipicamente brasileira, remonta ao fim do Império e início do período republicano e desde seu nascedouro continua, basicamente, com as mesmas regras, tendo aumentado o poder, a corrupção e por contradição a confiança.

Conta-se que para melhorar as finanças do jardim zoológico do Rio de Janeiro o barão João Batista Viana Drummond, criou uma loteria em que o jogador poderia escolher um entre os 25 bichos do zoológico.

Basicamente, os bichos eram representados individualmente pela seqüência numérica de quatro dígitos, compreendidas de 00 e 99 nos dois dígitos finais, haveriam 25 bichos que respeitada a sua ordem alfabética eram distribuídos em progressão aritmética múltiplas de quatro de 00 a 99. Ao final do dia, os organizadores do jogo revelavam o nome do bicho vencedor e afixavam o resultado num poste, o que até os dias de hoje, em algumas localidades, continua sendo feito, mas modernamente, é anunciado pelas emissoras de rádio.

O Jogo do Bicho permite apostas de simples moedas a altos valores. Essa modalidade de jogo sempre foi próxima à camada mais pobre da população e que não tinha franqueado o acesso a cassinos, rapidamente se alastrou pelo país e tornou-se, para o pobre, um jogo a seu alcance.

A organização do Jogo de Bicho preserva uma hierarquia típica da época medieval, com os senhores feudais(banqueiros do jogo) que  efetivamente assumem o risco do negócio, que bancam o pagamento das apostas, que controlam os sorteios, que detém o capital e ficam com os lucros e prejuízos do empreendimento, esses senhores tem poder de vida e morte em seus territórios, quem desafia o poder dos banqueiros, geralmente paga com a vida, os senhores feudais normalmente pagam vassalagem à alguma autoridade corrupta. No território do senhor feudal temos os guardas, os trabalhadores mais próximos, os camponeses e uma estrutura de manutenção de poder.  No caso do jogo do bicho o banqueiro tem os seguranças, os intermediadores, o dono da banca, os apontadores, os maloteiros (geralmente moto-boy) e os apostadores. E em razão de ser uma atividade que envolve muito dinheiro e não é controlada pelo poder público, essa jogatina atraiu muitas autoridades corruptas e nasceu um complexo sistema de venda e compra de facilidade, quase imitando pagamento de vassalagem, mas isso não será objeto de estudo deste trabalho.

Fizemos esse breve apanhado sem nos preocuparmos em qualquer aprofundação no mundo do jogo do bicho, pois, tivemos apenas finalidade de introdução no campo em que será analisado aspectos jurídicos do direito do trabalho. Especialmente diante da nova redação da OJ-SDI1-199 do TST:

OJ-SDI1-199 JOGO DO BICHO. CONTRATO DE TRABALHO. NULIDADE. OBJETO ILÍCITO (título alterado e inserido dispositivo) - DEJT divulgado em 16, 17 e 18.11.2010
É nulo o contrato de trabalho celebrado para o desempenho de atividade inerente à prática do jogo do bicho, ante a ilicitude de seu objeto, o que subtrai o requisito de validade para a formação do ato jurídico. Histórico: Redação original – Inserido em 08.11.2000.[2]

 

Dentro da CLT, aquele que assume os riscos da produção é o empresário, em regra, confundindo-se com a figura do empregador, por outro lado, a pessoa física que presta serviço de maneira pessoal, mediante remuneração, de maneira onerosa e subordinada é o empregado, ipsi literes artigos 2 e 3º e seus parágrafos da CLT .

 

Art. 2º - Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.

§ 1º - Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados.

§ 2º - Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas.

Art. 3º - Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.

Parágrafo único - Não haverá distinções relativas à espécie de emprego e à condição de trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual.

 

Regra geral, ninguém nega que entre o explorador do jogo do bicho e as pessoas diversas que trabalham para ele, seja segurança, gerentes de banca, apontador, moto-boy (maloteiro), há contrato de prestação de serviço, com todas as características do contrato de trabalho, porém, há objeto ilícito qual seja a exploração de atividade proibida em lei, prevista inclusive como contravenção penal. Afinal o objeto do contrato de trabalho, a custa de repetição, é expressamente proibido por lei.

 

Reza o Código Civil:

Art. 145. São os negócios jurídicos anuláveis por dolo, quando este for a sua causa.

Art. 150. Se ambas as partes procederem com dolo, nenhuma pode alegá-lo para anular o negócio, ou reclamar indenização.

Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:

II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu objeto;

III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito;

VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa;

VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe a prática, sem cominar sanção.

Art. 169. O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo.

 

No mesmo sentido a Lei das Contravenções Penais é clara:

 

Art. 58. Explorar ou realizar a loteria denominada jogo do bicho, ou praticar qualquer ato relativo à sua realização ou exploração:

Pena – prisão simples, de quatro meses a um ano, e multa, de dois a vinte contos de réis.

Parágrafo único. Incorre na pena de multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis, aquele que participa da loteria, visando a obtenção de prêmio, para si ou para terceiro.

 

Vamos tomar o caso típico do moto-boy, este, definitivamente, mantém contrato de trabalho no exato conceito da CLT, mas há evidente objeto ilícito, o prestador do serviço tem consciência da ilicitude do objeto do contrato. Também há fartas e reiteradas condenações criminais de moto-boys nessas atividades, novamente, condenação criminal também não é objeto deste trabalho.

 

Pensemos especificadamente no caso dos moto-boys, a OJ 199, fala claramente que “é nulo o contrato de trabalho celebrado para o desempenho de atividade inerente à prática do jogo do bicho”. Caso um juiz trabalhista entenda que a atividade do moto-boy não é inerente prática do jogo do bicho, essa decisão causará reflexos penais?

 

Para melhor clarear as idéias vamos para uma ação civil ex delito, caso seja proposta uma ação civil cobrando indenização por algum ato criminoso, a decisão penal que reconhece improcedência por negação de autoria ou inexistência do fato típico atingirá com golpe de morte a ação civil indenizatória.

 

Pois bem, caso o moto-boy seja preso em flagrante, por contravenção penal, numa banca do jogo do bicho, seria da competência da Justiça do Trabalho analisar se a atividade desempenhada pelo moto-boy é inerente á prática de jogo do bicho, e por tabela reconhecer a nulidade ou não do contrato de trabalho existente, e de maneira reflexa ao fundo, decidir se é crime ou não a atividade desempenhada. Nessa toada, passaria a existir a figura da ação penal ex laboris?

 

Ou, teríamos a bizarrice jurídica de um braço da justiça, a trabalhista reconhecendo válido o contrato de trabalho firmado com todos os seus consectários, e a justiça criminal condenando esse mesmo trabalhador, exatamente por ter trabalhado.

 

Por outro lado, num eventual depoimento em juízo, o moto-boy, viria e relataria o contrato de trabalho em audiência e o juízo criminal o processaria ante a confissão de crime?

 

A única conclusão a que se chega é que a aplicação dessa nova interpretação da OJ-199 evidentemente tem reflexos penais. A partir dessa nova redação se faz necessário, primeiro e com novos olhos, analisar, na justiça do trabalho, a licitude ou não do contrato de trabalho, e, uma vez reconhecida a licitude não há que se falar em crime, no contrário, caso a justiça do trabalho não reconhecesse a licitude do contrato de trabalho e de seu objeto, aí sim, teríamos espaço para a atuação da esfera criminal. Nessa toada estaríamos diante do nascimento da ação penal ex laboris.

 


[1] Disponível em http:/www.ojogodobicho.com/historia.htm, acesso 30/01/2010

[2] Disponível em http:/www.tst.jus.br, acesso 01/02/2011.

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