10/09/2018

A silenciosa crise do FIES.

O programa de financiamento estudantil da União, FIES, está em crise.

Essa crise decorre, é claro, da conjuntura econômica do Brasil e do mundo, mas decorre também de falhas na condução do programa.

Inicialmente, durante o último Governo, gastos elevadíssimos, especialmente em ano eleitoral, criaram um problema de fluxo financeiro. Na prática, o grande número de novos contratos amaçava a sustentabilidade do FIES, segundo posto pelo atual Governo. Além disso, também foi divulgado o problema da inadimplência. Essas questões não posso e não desejo avaliar aqui, pois o tema demanda análise de dados que não conheço e o uso de ferramentas que não domino.

Essa situação, gerou uma tentativa artificial de revisão dos reajustes de mensalidades no ano de 2015, esse sim um problema jurídico que se desdobra até hoje. Penso eu que nesse momento o Poder Público percebeu que podia imputar o problema FIES ao comportamento das Instituições de Ensino, o que deu início a uma série de normas contestáveis e quebras de contrato.

Para ilustrar essa crise jurídica menciono alguns dos problemas:

  1. Imposição de percentual de reajustes à revelia da Lei de Mensalidades (Lei 9.870/1999);
  2. Divulgação da possibilidade de cobrança da diferença de mensalidades em face dos alunos, mesmo quando seus contratos mencionavam 100% de financiamento;
  3. Imposição de um desconto de 5% nas mensalidades escolares destinado exclusivamente aos alunos beneficiários do FIES;
  4. Mudança de regras nos contratos vigentes, que implicaram até mesmo mesmo em alteração de percentuais e criação de barreiras para aditamentos;
  5. Repasse de taxas contratualmente – e legalmente – imputadas ao Estado, para as Instituições de Ensino;
  6. Ampliação indevida do rol de descontos que deveriam ser repassados ao FIES, incluindo os descontos de caráter temporário e até mesmo os eventualmente concedidos para captação;

Essas são apenas algumas das ilegalidades detectadas nos últimos 3 anos, as quais, por si só, demonstram que há um problema, uma crise na aplicação do direito aos contratos do FIES.

O mais grave, neste momento, é que já não há mais indicativo de que os erros serão corrigidos e os contratos respeitados. Na verdade, a situação está tão agravada que existe também uma lacuna ética, uma falta de senso do que é certo ou errado, de justo ou injusto.

Um bom exemplo disso é o tratamento dado ao desconto pontualidade. Esse desconto consiste em uma medida de incentivo ao pagamento na data correta, que premia os bons pagadores com uma redução da mensalidade escolar (sobre esse tema ver REsp 1424814). Por óbvio, essa vantagem só deveria ser concedida aos contratantes de serviços educacionais que pagassem na data avençada ou em momento prévio indicado no contrato.

Contudo, na nova norma do FIES, foi ratificado que: A incidência de desconto de pontualidade sobre a parcela financiada do encargo educacional independe da data do repasse dos valores correspondentes às mantenedoras das IES (Art 34, § 2º, da Portaria 209/2018).

Aí já existe uma evidente distorção, afinal o desconto pontualidade tem como fato gerador a data de pagamento, por isso a data do repasse não deveria ser irrelevante.

Mas a situação se mostra eticamente mais controvertida quando a mesma norma trata da extensão do referido desconto ao estudante, beneficiário do FIES:

§ 6º Na hipótese de desconto de pontualidade, caso o estudante não efetue o pagamento da coparticipação, por meio de boleto único, no prazo que gera o desconto, para fins de emissão de novo boleto único, deverá o estudante arcar com o valor integral da coparticipação que lhe cabe do encargo educacional.

Como visto acima, a norma simplesmente trata o estudante de forma mais rigorosa que as instituições financeiras e o ente público que paga em atraso. Não seria isso um desvio ético? Quem deveria dar exemplo nesse caso? Não deveria ser o Estado, que, com toda sua obrigação de controle e planejamento de gastos, tem condições iguais ou maiores para arcar em dia com seus débitos?

Infelizmente, essa é a situação atual do FIES, um programa que nada ensina sobre ética e que contém graves falhas jurídicas. No atual contexto, os princípios da boa-fé, da razoabilidade e até mesmo da irretroatividade da lei são simplesmente negligenciados. E valores como interesse público, dignidade da pessoa humana, solidariedade e confiança também são esquecidos.

Dito isso, cabe aqui uma ressalva: devo dizer que dizer que não desconheço o discurso de que as normas foram modificadas ao longo do tempo para dar sustentabilidade financeira ao FIES, tal e qual outros programas de financiamento de bens e serviços ofertados no mercado. Afinal, acredito que direito e economia se complementam e que a gestão de recursos é essencial para implementar garantias jurídicas.

Entretanto, isso não reduz o problema, ao contrário, o torna mais evidente. Como questiona o filósofo Michael Sandel, “os valores de mercado corrompem, dissolvem e deslocam as normas alheias à ele”*, e aqui talvez tenhamos um exemplo concreto dessa dissolução das normas, de direito e ética. Em resumo, não obstante a tentativa de uma gestão eficiente, há uma crise silenciosa no programa FIES.

*SANDEL, M. O que dinheiro não compra. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2012. p. 112.

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