Afetividade e familiaridade
Nilton Bruno Tomelin
Um dos aspectos mais relevantes observados na evolução do direito ligado à família é sua imersão no campo da afetividade. Noutros tempos essa definitivamente não era a característica impressa nos diplomas jurídicos. A afetividade no tocante ao direito familiar lhe rotulou certo grau de subjetividade, complexidade típica de temas atuais.
Em tempos pregressos o entendimento das relações familiares em pouco se assemelhava ao atual. No dissertar de VENOSA (2004, p. 18)
[...] o afeto natural, embora pudesse existir, não era o elo de ligação entre os membros da família. Nem o nascimento nem a afeição foram fundamento da família romana. [...] Os membros antigamente eram unidos por vínculo mais poderoso que o nascimento: a religião doméstica e o culto dos antepassados. [...] Por isso era sempre necessário que um descendente homem continuasse o culto familiar.
Assim, o exercício místico é também uma forma de materializar a unidade familiar, notadamente privilegiando-se a figura masculina. Em menores proporções é o que se observa contemporaneamente, considerando-se rituais e até mesmo práticas efetivas em boa parte das famílias.
Entretanto há um processo evolutivo em curso, no direito familiar. O epicentro deste processo é a intersecção afetiva entre os membros familiares. PESSANHA afirma que o diploma legal evidencia sua evolução no momento que o casamento, a união estável e a família monoparental foram explicitamente instituídas, além de outras formas de família existentes, como a família socioafetiva, homoafetiva, entre outras entidades familiares fundadas laços de afeto.
Sobre isso é possível dizer que o Código Civil de 2002 sob a égide da Constituição Federal de 1988, materializou profundas mudanças no que diz respeito às famílias, seja em relação às relações de parentesco seja no que diz respeito a situação dos filhos até então classificados como legítimos ou ilegítimos. WALD (2005, p. 32) constata esta evolução afirmando que “Eliminou-se toda referencia a filiação legítima, legitimada, adulterina, incestuosa ou adotiva, visto que, a partir do novo ordenamento constitucional, a filiação é uma só, sem discriminações (arts. 1602 a 1635 e outros). Varreu-se do texto o capítulo da legitimação (arts. 1618 a 1620).”
Pode-se então consolidar a ideia de que a legitimidade é estabelecida por meio de outros laços que não o místico de outrora ou o biológico sempre evocado. Trata-se do afeto, que inclusive motiva a necessária proteção do Estado em relação a esta nova configuração prática e conceitual de família. PASSANHA evidencia tal fenômeno evocando o princípio do afeto doutrinando que “através da aplicabilidade do Princípio do Afeto, elemento norteador das famílias contemporâneas, todas as famílias merecem proteção do Estado, por meio de atitudes de vida plena e que estruturam os laços familiares”.
Portanto, afetividade é neste momento, um caminho para a consolidação da familiaridade no formato, se é que há algum, contemporâneo. O próprio Estado há que se ocupar da proteção da diversidade familiar, como expressão da materialização da democratização de direitos e formas de exercer a vida em sociedade e em família. Sobre isso DIAS (2009, p. 313-14) doutrina que “ocorreu verdadeira desbiologização da paternidade-maternidade-filiação e, consequentemente, do parentesco em geral”. Trata-se efetivamente de uma visível evolução conceitual e prática em que as relações afetivas afirmam-se como verdadeiros referendos na humana necessidade de estabelecer vínculos sólidos de proximidade a que tradicionalmente chama-se de família.
Porém não é suficiente o reconhecimento na letra da lei, visto que o exercício livre das relações familiares ainda esbarra em determinados tabus. Nos momentos de interrupção ou comprometimento da dignidade destas relações motivadas por preconceitos ou posturas discriminatórias há que se evocar o Estado. Sobre isso LÔBO (2000)
A tutela do Estado voltou-se, então, para as pessoas que integram a família construída sobre os laços do afeto e direcionada para a realização espiritual e ao desenvolvimento da personalidade de seus membros. Tem-se a chamada repersonalização ou despatrimonialização das relações familiares, entendida como a realização pessoal da afetividade e da dignidade humana, no ambiente de convivência e solidariedade como função básica da família da época presente.
Portanto, a evolução a que se propõe o direito de família, atinge aspectos que transcende os rituais e figurinos do processo legal. Implica pois em valores percebidos e construídos pela convivência e que não podem ser ignorados e tampouco comprometidos pela imposição da lei. Ao contrário, a lei e o Estado (na condição de seu fiel juiz) são responsáveis pela garantia do gozo destes direitos-valores.
Por sua feita, FACHIN (2003, p. 25) doutrina que
O princípio da afetividade especializa, no âmbito familiar, os princípios constitucionais fundamentais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da solidariedade (art. 3º, I), e entrelaça-se com os princípios da convivência familiar e da igualdade entre cônjuges, companheiros e filhos, que ressaltam a natureza cultural e não exclusivamente biológica da família.
Assim, não há tipos de relações familiares, mas relações familiares e estas se consolidam pelo afeto, que possui na dignidade o seu maior ponto de chegada. Definitivamente não há como estabelecer linearmente, na letra da lei uma forma de existir família, apenas a garantia de que o Estado a proteja uma vez estabelecida. MACHADO, corrobora com esta ideia afirmando que a entidade familiar é um campo destinado à realização da dignidade de todos seus membros, não sendo mais um núcleo social fechado e individualista, baseado no afeto e respeito mútuos.
Referências Bibliográficas
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 5 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao novo código civil: do direito de família; do direito pessoal; das relações de parentesco, v.18. 1. ed. Coordenador Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio jurídico da afetividade na filiação. Jus Navigandi, Teresina, a. 4, n. 41, mai. 2000. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=527>.
MACHADO Gabriela Soares Linhares. Dos princípios constitucionais e infraconstitucionais aplicáveis ao Direito de Família: Repercussão na relação paterno-filial. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/artigos/detalhe/865. Acesso em 18/07/2014
PESSANHA Jackelline Fraga. A afetividade como princípio fundamental para a estruturação familiar. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/artigos/detalhe/788. Acesso em18/07/2014.
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. v. 6. 4. ed. São Paulo; Atlas, 2004.
WALD, Arnold. O novo direito de família. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2005.