As influências do Existencialismo na Pedagogia de Paulo Freire
Dirlei de Azambuja Pereira [1]
Priscila Monteiro Chaves [2]
Daiana Corrêa Vieira [3]
Resumo: O escrito objetiva apresentar, sucintamente, os contributos do existencialismo para a Pedagogia de Paulo Freire. Para tanto, recorremos a alguns comentadores da obra de Freire, como Andreola (2010, 1985) e Bardaro (1981), para explicitarmos algumas das categorias, provenientes desse paradigma, que estão presentes no construto freiriano. Concluímos que essa corrente filosófica oferece uma relevante contribuição na original e criativa pedagogia de Paulo Freire na medida em que permite uma reflexão radical sobre o mundo da existência e os diferentes contextos de opressão oriundos do modelo social capitalista.
Palavras-chave: Paulo Freire; pedagogia; existencialismo.
Freire inicia a primeira parte da obra Conscientização (1980) com um título muito sugestivo: O homem e sua experiência. Aqui nos parece colocada em evidência a importância, não somente nesse escrito, como no transcorrer de sua produção, da existência. Com efeito, a nosso ver, o mundo da existência ocupa um lugar especial na teoria freiriana. Outro destaque a ser feito diz respeito às dez situações existenciais que compunham a sua perspectiva teórico-metodológica. Elas, por sua vez, promoviam a problematização acerca da realidade dos educandos envolvidos no processo de alfabetização. Andreola (2010), ao escrever o verbete Existência para o Dicionário Paulo Freire, atenta para mais uma questão. Para ele, a obra de Paulo Freire deve ser compreendida e, consequentemente, “interpretada a partir da dramaticidade de sua existência pessoal, de sua experiência concreta da pobreza e da fome, e de sua comunhão histórica com os pobres, os famintos, os esfarrapados do mundo, os oprimidos do Brasil, da América Latina e do mundo [4]” (ANDREOLA, 2010, p. 171). Esse olhar existencial sobre o mundo e sua problematicidade impregnam o construto freiriano e, por seu destino, impulsionam, mediante o processo de conscientização, que práxis transformadoras possam ser edificadas. Olhar esse que foi também notado pelas vias da resistência:
Mais do que qualquer outro educador deste século, Freire conseguiu desenvolver uma pedagogia de resistência à opressão. Além disso, ele viveu aquilo que ensinava. Sua vida foi uma história de coragem, padecimento, perseverança e crença inquebrantável no poder do amor (MCLAREN, 1999, p. 21).
Martha Bardaro (1981), em seu escrito Paulo Freire e o pensamento existencialista, expõe preeminentes argumentos em torno dessa corrente filosófica e sua influência sobre o pensamento freiriano. A importância dirigida ao ter em detrimento do ser, provenientes do modelo social capitalista, fazem parte da argumentação de Bardaro (1981) no sentido de que essa distorção implica na desumanização da existência do homem no mundo. Entretanto, como caminho inverso ao descrito, os seres humanos, ao refletirem criticamente sobre o seu modo de existir, podem se aventurar em movimentos transformadores, potencializando, ainda, a superação da opressão originária do sistema de classes.
Para Freire, o caminho se faz caminhando, célebre máxima que se opõe à lógica opressora que emite uma falsa ideia de que o mundo é estático.
Não posso entender os homens e as mulheres, a não ser mais do que simplesmente vivendo, histórica, cultural e socialmente existindo, como seres fazedores de seu 'caminho' que, ao fazê-lo, se expõem ou se entregam ao caminho que estão fazendo e que assim os refaz também. É por isso que o opressor se desumaniza ao desumanizar o oprimido, não importa que coma bem, que vista bem, que durma bem. Não seria possível desumanizar sem desumanizar-se tal a radicalidade social da vocação. Não sou se você não é, não sou, sobretudo, se proíbo você de ser (FREIRE, 2006, p. 100).
Nesse sentido, o existencialismo oferece uma contribuição de extrema relevância, no que compete, para além da transitividade da consciência, ao caráter de inacabamento do humano. Nas palavras de Freire,
[...] não é o resultado exclusivo da transitividade de sua consciência, que o permite auto-objetivar-se e, a partir daí, reconhecer órbitas existenciais diferentes, distinguir um “eu” e um “não eu”. A sua transcendência está também, para nós, na raiz de sua finitude. Na consciência que tem desta finitude. Do ser inacabado que é e cuja plenitude se acha na ligação com seu Criador. Ligação que, pela própria essência, jamais será de dominação ou de domesticação, mas sempre de libertação (FREIRE, 2000, p. 48).
De acordo com Bardaro (1981, p. 59), “o pensamento existencialista salienta o caráter dinâmico da Existência. O homem não é, mas vai sendo e, nesse ir sendo, vai conquistando seu ser. Quer dizer, a filosofia existencialista admite um processo de vir-a-ser em relação à vida humana”. Contudo, Bardaro (1981, p. 59) salienta que esse movimento não ocorre na totalidade da humanidade, já que as contradições existentes impedem a plenificação da existência e conduzem os homens à mera contemplação diante do mundo. Essa é uma visão que pode se esgotar em si mesma, caso não se vislumbre, também, a possibilidade revolucionária (ou transformadora). Assim, a autora, ao expor a presente análise, credita a Freire a compreensão de que o homem pode vir-a-ser co-criador desse mundo (BARDARO, 1981). Ao falar sobre esse postulado presente na teoria freiriana, Bardaro (1981, p. 59-60) assevera:
Esta não é uma idéia original, de Freire. Insere-se na mais pura tradição bíblica e se encontra reproduzida por filósofos do centro, como Marx, Bergson, e minunciosamente elaborada por Teilhard de Chardin. É, por outro lado, o pressuposto básico para pensadores de periferia. De fato, se não se admite a evolução, não tem sentido falar em libertação, humanização, transformação do mundo.
E, ao falar sobre a lucidez da corrente existencialista, é categórica:
O Pensamento Existencialista foi tremendamente lúcido no diagnóstico do mundo contemporâneo. Experiências alienantes que impedem a pessoa de crescer, como a funcionalização, a predominância do ter, a perda do senso do mistério, a angústia, a falta de comunicação, o fracasso têm sido magnificamente detectadas pelos filósofos da Existência. Estes têm desnudado profundamente a alma humana, em textos com os quais, de alguma forma, todos nos identificamos (BARDARO, 1981, p. 61).
Na medida em que há essa nota positiva no pensamento existencialista, Bardaro (1981) aponta que existe um aspecto negativo referente a não identificação das causas de todas essas experiências alienantes. Ao se deparar com elas o ser humano, quando não reconhece as origens dessas problemáticas desumanizantes, assume uma posição pessimista. No entanto, Bardaro (1981) observa que no construto freiriano, assim como nas obras de outros teóricos do Terceiro Mundo, há uma distinção. Para ela,
[...] em Paulo Freire e nos pensadores do Terceiro Mundo, em compensação, o pessimismo não tem lugar. Há, isso sim, plena consciência de um mundo machucado, desgarrado, de um mundo que oprime e condiciona o homem. Mas, essa convicção é a força motriz que anima e impele a construção de um mundo novo e do novo homem [...] (BARDARO, 1981, p. 61).
Portanto, ao se reconhecerem como seres inconclusos e, assim, caminharem ao encontro da humanização (que é um processo dando-se e não dado), os homens necessitam denunciar a opressão para anunciar a plenitude da existência humana.
E essa luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos − libertar-se a si e aos opressores. Estes que oprimem, exploram e violentam, em razão de seu poder, não podem ter, neste poder, a força de libertação dos oprimidos nem de si mesmos. Só o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar a ambos (FREIRE, 2006, p. 33).
E essa conquista somente poderá ser concretizada mediante a práxis transformadora, que nasce, evidentemente, daqueles que sofrem com a opressão, os oprimidos. Ao dialogar com o existencialismo, Freire, com uma criatividade rigorosa, oferece ao processo educativo outro ingrediente imprescindível: a reflexão crítica sobre existência humana como condição para a edificação de ações superadoras da opressão.
Referências:
ANDREOLA, Balduino Antonio. Horizontes hermenêuticos da obra de Paulo Freire. Boletim Bibliográfico, Faculdade de Educação da UFRGS, Porto Alegre/RS, v.10, n.1, p.83-102, 1985.
BARDARO, Martha. Paulo Freire e o pensamento existencialista. In: TORRES, Carlos Alberto (Org.). Leitura crítica de Paulo Freire. São Paulo: Edições Loyola, 1981. p.53-62.
EXISTÊNCIA. ANDREOLA, Balduino Antonio. In: STRECK, Danilo; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José (Orgs.). 2. ed. Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. p.171-172.
FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. Trad. Kátia de Mello e Silva. 3. ed. São Paulo: Editora Moraes Ltda., 1980.
______. Educação como prática da liberdade. 24. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
______. Pedagogia do Oprimido. 43. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.
MCLAREN, Peter. Utopias provisórias: as pedagogias críticas num cenário pós-colonial. Petrópolis: Vozes, 1999.
[1] Professor Adjunto na Universidade Federal de Pelotas (UFPel); Doutor e Mestre em Educação pelo PPGE/FaE/UFPel. Especialista em Pedagogia Gestora pela FACVEST; Especialista em Mídias na Educação pela UFSM; Graduado em Pedagogia pela UFPel. E-mail: pereiradirlei@gmail.com
[2] Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) - Bolsista CNPq; Mestra em Educação e Graduada em Letras (Português/Francês) pela mesma Universidade. E-mail: pripeice@gmail.com
[3] Mestra em Educação pelo PPGE/FaE/UFPel; Especialista em Educação Básica: Teoria e Prática Docente pela URCAMP; Especialista em Mídias na Educação pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense; Graduada em Letras (Português/Espanhol) pela Universidade Católica de Pelotas (UCPEL). Docente nas Redes de Ensino Municipal e Estadual do RS. E-mail: daianac.vieira@gmail.com
[4] Nesse excerto, Andreola (2010) faz referência a um artigo seu intitulado Horizontes hermenêuticos da obra de Paulo Freire (Boletim Bibliográfico, Faculdade de Educação da UFRGS, Porto Alegre/RS, v.10, n.1, p.83-102, 1985), no qual já havia realizado esta afirmação.