Avaliação como instrumento de aprendência
Historicamente a avalição educacional tem sido um instrumento de diagnóstico pedagógico, de coação disciplinar e de hierarquização de produtos (alunos). A conversão desta lógica, fazendo da avaliação um instrumento de ensino constitui-se num drástico processo de ruptura. Esta ruptura, por sua vez, apresenta-se como um desafio de grande impacto sobre a gestão e o fazer pedagógico. A proposição é acima de tudo, fazer da avaliação uma possibilidade de compreender a significação (importância) e a intensidade (qualidade) daquilo que aprendemos.
É importante iniciar esta discussão com algumas perguntas fundamentais acerca da relação entre avaliação e aprendência, conforme assinala ASSMANN (1998, p. 93)
Como se podem avaliar as vivências profundas do prazer de estar aprendendo, ou nem se quer nos interessamos por saber que é isso? Atribui-se a Freud a frase de que uma só coisa é comparável ao orgasmo, e é o prazer de estar pensando. Recordemos, uma vez mais: vida e aprendência são no fundo a mesma coisa. Quantas vidas humanas são des-vividas na escola?
Esta última pergunta reflete sem dúvida, um grande dilema, especialmente no que diz respeito ao efetivo compromisso da avaliação no contexto das inúmeras possibilidades de aprendência. Ora, se a aprendizagem é um processo, por isso aprendência, então a avaliação há que compreender que seu objeto de avaliação é essencialmente um processo: a vida. Quando não se avalia nesta perspectiva tenta-se, sempre sem sucesso, adiar a vida. Sem sucesso, pois ao contrário dos demais processos, em se tratando de vida não há adiamento ou suspensão. Simplesmente há vida não sendo vivida.
A avaliação é pois um instrumento que promove e facilita o curso deste processo, consolidando dizeres do senso comum como “viver é aprender”. Uma avaliação contrária a esta lógica constitui-se apenas numa técnica (mediocrizada) de classificação de pessoas, instituição, etc. Ao desconsiderar as vivências, e a qualidade com que ocorrem, a avaliação centraliza sua intervenção em favor da quantidade de produtos e resultados. Por consequência não contribui com a construção pessoal e/ou intelectual de avaliados e avaliadores. Neste sentido SOUZA (2009, p33-34) afirma que por sua
ênfase nos produtos e resultados; atribuição do mérito a alunos, instituições ou redes de ensino; dados de desempenho escalonados, resultando em classificação; dados predominantemente quantitativos; destaque da avaliação externa, não articulada à autoavaliação.
Assim sendo, a avaliação nesta perspectiva contribui incisivamente na desumanização do processo educativo, considerando apenas a capacidade de executar tarefas e não a de realizar sonhos e desejos. Isto depõe contrariamente a perspectiva de que a escola é um espaço privilegiado de aprendência significativa que prioriza a qualidade de vida de avaliados e avaliadores.
Neste sentido enfatiza LAJONQUIÈRE (2010 p.62-63) que educar é transmitir marcas simbólicas que possibilitem à criança conquistar para si um lugar numa história, mais ou menos familiar, e, dessa forma, poder se lançar às empresas do desejo.
A avaliação, portanto, há contribuir decisivamente não apenas na compreensão desta transmissão, mas principalmente na qualificação deste sujeito em favor de sua conquista e permanência na história. Considerando a avaliação como parte de um processo, evidentemente não será ela a única a prover qualitativamente o ser humano para o desafio de viver bem, mas a soma de inúmeros outros atores intrínsecos à formação humana. O que parece desafiar a educação progressista é acima de tudo, fazer com que a avaliação não anule a intervenção de outros atores que igualmente podem e dever exercer suas atribuições.
Se educar é proporcionar ao sujeito a possibilidade de se inscrever na história, escrevendo a sua com um roteiro absolutamente inédito é evidente que a avaliação deverá contemplar elementos subjetivos como gostos, afinidades e projetos de vida. Entretanto é inquestionável que a vida é movida essencialmente por desejos e estes determinam os demais elementos subjetivos.
Além disso é possível dizer que a educabilidade é fundamental para que os sujeitos individualmente únicos, estabeleçam laços sociais que permitam partilhar desejos e consolidando a completude intrínseca ao conceito de convivência, na perspectiva na necessidade de viver com. Assim um conceito há que ser avaliado, na prática da avaliação escolar segundo sua capacidade de intervir positivamente na vida do aprendente e dos que partilham de seu convívio. LAJONQUIÈRE (2010 p.78) “a educação no interior do campo da palavra e da linguagem animada pelo desejo e, dessa forma, coloca em relevo o seu estofo de laço social”.
Em tempos de vida virtual paralela ao modelo convencional de convívio proximal é fundamental que a avaliação fortaleça a preocupação em se fazer do convívio virtual uma espaço de convívio real. Afinal o virtual, apesar de menos palpável, é tão real quanto o formato de convívio consolidado ao longo de centenas de séculos. Assim os laços sociais também ampliaram sua complexidade e sua significação, transferindo-se para o interior do processo educativo, evidenciando que este não é apenas um caminho para o saber, mas uma soma de indícios na construção do saber fazer. Em sala de aula tem-se menos instrução e mais significação, menos transmissão e mais partilha, menos ensino e mais aprendência.
Em relação a estas diferenças é fundamental compreender o protagonismo da avaliação no sentido de aprofundar a discussão em torno do efetivo papel da escola em favor do fortalecimento do ensino para uma educação de qualidade. Conforme ARENDT (2011, p. 247) “não se pode educar sem ao mesmo tempo ensinar; uma educação sem aprendizagem é vazia, [...] é muito fácil, porém, ensinar sem educar, e pode-se aprender durante o dia todo sem por isso ser educado”.
Dito de outra forma, é possível afirmar que na consolidação da relação entre ensino e educação constitui-se a aprendência e o protagonismo da avaliação está necessariamente na compreensão da intensidade da contribuição do ensino para a educação do sujeito.
Avaliar é portanto, um compromisso ético e humanizador. Não há aprendência, sem que este compromisso figure no cotidiano da escola e das vivências ali consolidadas. Uma escola, e por conseguinte uma avaliação, alheia a estes valores serão apenas um centro de treinamento e uma prática classificatória. Se viver é aprender, avaliar é perceber-se em constante aprendência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARENDT, Hannah. A crise na educação. In: ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011, p. 221-247.
ASSMANN, Hugo. Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente. Petrópolis: Vozes, 1998.
LAJONQUIÈRE, Leandro de. Figuras do infantil. Petrópolis: Vozes, 2010.
SOUZA, Sandra Maria Zakia Lian. Avaliação e gestão da educação básica no Brasil: da competição aos incentivos. In: DOURADO, Luiz Fernandes. Políticas e gestão da educação no Brasil: novos marcos regulatórios? São Paulo: Xamã, 2009.