30/05/2019

Breves reflexões sobre a educação de surdos no Brasil: o jogo confrontativo entre a homogeneidade e a diversidade em um mundo marcado pelo compartilhamento das diferenças

Breves reflexões sobre a educação de surdos no Brasil: o jogo confrontativo entre a homogeneidade e a diversidade em um mundo marcado pelo compartilhamento das diferenças.

Por Anderson Luis da Paixão Café

Bibliotecário, Doutor em Difusão do Conhecimento (UFBA), Acadêmico do curso de Licenciatura em Filosofia do Centro Universitário Internacional (UNINTER).

 

Resumo

Tudo indica que estamos vivendo em um período histórico no qual o discurso da diversidade se sobrepõe à narrativa da homogeneidade. Talvez, em nenhum outro momento da História, tenhamos visualizado tantos movimentos de surdos, cegos, cadeirantes, deficientes múltiplos e mentais, negros, gays, lésbicas e homossexuais reivindicarem o reconhecimento de suas diferenças. Nesse sentido, este artigo traz breves pinceladas reflexivas a respeito da educação de surdos no Brasil sob a ótica do paradigma da educação inclusiva. Para tentar dar conta dessa discussão, iniciamos o texto com o resgate do conceito filosófico de “devir” com base em pensadores pré-socráticos de modo a provocarmos os leitores no sentido desses refletirem sobre a possibilidade de sermos iguais num mundo marcado pelas constantes transformações. No decorrer da exposição, argumentamos sobre como o paradigma da inclusão bateu às nossas portas em pleno século XXI, demandando o reconhecimento da diversidade humana em uma sociedade que caminha para o compartilhamento das diferenças. Por fim, o artigo foi encerrado com algumas dicas, sugestões e proposições ensaísticas que podem ser pensadas e executadas na tentativa de tornar a cultura surda mais viva e presente entre todos nós.

Palavras-chave: Igualdade. Diversidade. Educação inclusiva. Educação de surdos no Brasil.

Abstract

Everything indicates that we are living in a historical period in which the discourse of diversity overlaps with the narrative of homogeneity. Perhaps, at no other time in history, have we seen so many deaf, blind, wheelchair-bound, disabled and mentally retarded, black, gay, lesbian, and homosexual movements claiming recognition of their differences. In this sense, this article brings brief reflective brushstrokes about the education of the deaf in Brazil from the perspective of the inclusive education paradigm. In order to try to account for this discussion, we begin the text with the rescue of the philosophical concept of "becoming" based on pre-Socratic thinkers in order to provoke readers to reflect on the possibility of being equal in a world marked by constant transformations. In the course of the exhibition, we argued about how the paradigm of inclusion knocked on our doorsteps in the 21st century, demanding the recognition of human diversity in a society that walks towards the sharing of differences. Finally, the article was closed with some essayistic hints, suggestions and propositions that can be thought and executed in an attempt to make the deaf culture more alive and present among all of us.

Keywords: Equality. Diversity. Inclusive education. Education of the deaf in Brazil.

1 INTRODUÇÃO

            Se há verdadeiramente uma verdade, ainda que muitos pensadores suspeitem da existência dela, é a de que todos nós, de certa forma, estamos navegando em um grande transatlântico robusto, bonito, atraente e encantador que carrega pessoas racionais, inteligentes, sempre alegres, bem resolvidas, determinadas, que querem o bem para toda a humanidade e que acreditam, fielmente, que a água mais propícia para se navegar é aquela permeada pelo oceano daquilo que aprendemos a chamar de “igualdade entre todos”.

            Talvez em nenhum outro momento de toda a nossa História tenhamos ouvido e lidado tanto com um conjunto discursivo emitido por diferentes atores sociais, políticos, econômicos e culturais que prega a igualdade entre todos. Tanto é assim que, em alguns momentos, afirmar a diferença pode parecer arrogância ou fraqueza, a depender de quem faça a leitura. Mas será mesmo que somos todos iguais? Quem disse que somos iguais? Ou, mais ousadamente: é possível sermos iguais?

            Ao resgatarmos o conceito de devir, formulado por um dos pensadores de expressiva significação dentro da história do pensamento filosófico ocidental, o pré-socrático Heráclito de Éfeso, talvez possamos trilhar um caminho interessante para pensarmos na possibilidade de sermos realmente iguais. Para o referido pensador, que era conhecido como o filósofo da mudança de acordo com Chauí (2002) e Aranha e Martins (2000), tudo está em constante transformação, isto é, não é possível a um homem banhar-se duas vezes no mesmo rio porque tanto ele quanto o próprio rio já não seriam mais os mesmos do primeiro banho. O devir; o tudo passa; o tudo se transforma; o tudo está em movimento seria, portanto, a verdadeira essência do mundo, na perspectiva heraclitiana. Um bom exemplo para pensarmos no devir heraclitiano é olharmos para os álbuns de fotografias de nossas famílias e percebermos que, de alguma forma, aquele que está ali já não representa aquela pessoa cuja foto foi tirada há dez, quinze ou vinte anos atrás.

           Diferentemente de Heráclito de Éfeso, Parménides de Eleia pregava a permanência das coisas no mundo, no qual aquilo que é não poderia deixar de sê-lo. O devir filosófico Heraclitiano, portanto, se orientava pela idéia de que o que é pode deixar de sê-lo e isto acontece em razão do próprio movimento da História, o que implica dizer que o homem não seria igual a ele mesmo no decorrer de um determinado espaço temporal (REALE, 1989).

         Se nós mesmos não somos iguais o tempo todo, imagine o outro, os animais, as plantas, as águas, os solos, enfim, a natureza e os seres que nos cercam. Os filósofos da corrente atomística defendiam que o mundo sempre esteve em constante mutação porque os átomos, matéria indivisível que constituiriam a essência dos seres e de tudo o que existe no mundo se encontravam soltos no espaço aleatoriamente, sendo que do encontro dessas partículas gerava-se o acontecimento da vida e de tudo o que conhecemos até então. (REALE, 1989; ARANHA; MARTINS, 2000; CHAUÍ, 2002)

         Mas imagine como é viver em um mundo no qual tudo se transforma o tempo todo? Como viver a experiência de não chamar uma banana de banana já que a banana que você comprou na semana passada já não é mais a mesma banana que você irá saborear no dia de hoje? Como lhe dar com a ideia de que o seu cachorro não é mais aquele que você ganhou de sua mãe e que por isso o nome dele sequer deveria ser o mesmo que você o chama até hoje ou como pensar que a sua atual mulher em nada se parece com aquela pessoa que você se casou há mais de dez anos, ainda que vocês possam estar juntos, convivendo diariamente?

        A experiência de pensarmos filosoficamente em um mundo em contínua transformação parece gerar pelo menos três principais certezas iniciais: (1) a de que não podemos ser os mesmos o tempo todo; (2) a de que para tentarmos lidar com as mudanças criamos uma série de dispositivos de controle e a de que (3) na ânsia de controlar as diferenças naturais entre os seres estabelecemos hierarquizações, segregações, distinções e separações que mais nos excluem do que nos unem.

         Em uma tentativa de nomear os fenômenos em sua mais plena transformação natural criamos dispositivos artificiais como a linguagem, os signos e as regras gramaticais para nomear, batizar, intitular, designar e estabelecer o que deve ser considerado “certo” e “errado” dentro de uma determinada comunidade linguística. Para além da linguagem, elaboramos, também, outros dispositivos artificiais de controle das diferenças naturais como as leis e os decretos que, quase sempre, como nos lembra o grande filósofo alemão, Friedrich Nietzsche (2012), atuam como forças repressivas, objetivando conter as forças vitais, as forças de potências de agir próprias das singularidades de cada indivíduo, de cada corpo que constitui o universo cósmico no qual todos nós estamos inseridos. Isso quer dizer que esse conjunto de dispositivos artificiais (a linguagem; as leis, dentre outros não citados aqui) atuam muito mais no sentido de nos padronizar do que de nos reconhecer em nossas diferenças.

       Nesse sentido, o que tudo indica é que, muito provavelmente, não nos damos muito bem, inclusive do ponto de vista psicológico, com as diferenças, com as singularidades, com as particularidades, com as unicidades que nos caracterizam enquanto indivíduos e para isso criamos uma série de dispositivos artificiais de controle, como os já citados acima, para agregar pessoas pelos seus supostos graus de “semelhança” e “diferença”. A nossa incapacidade e porque não dizer a nossa falta de vontade, de disposição e de coragem para assumirmos o diverso nos leva, inclusive, a criarmos hierarquizações entre os diferentes, forjando uma suposta verdade de que os homens são superiores às mulheres ou de que os negros são inferiores aos brancos ou de que os homossexuais são doentes dentro de uma sociedade estruturada sob a ótica do machismo ou mesmo de que as pessoas com deficiências físicas, transtornos generalizados e/ou super dotação, a exemplo dos surdos, devem ser invisibilizados dentro de uma sociedade que adora e cultua o “corpo perfeito” como expressão máxima da existência humana.

         Não é a toa que as nossas academias de ginásticas andam superlotadas com pessoas investindo horas a fio, malhando, enlouquecidamente, para ressaltarem braços e pernas, de modo a se sentirem mais importantes e atraentes em uma sociedade que vive sob a ótica do paradigma da extrema valorização dos aspectos físicos dos corpos. Sem contar que muitas vezes, infelizmente, muitas pessoas, sobretudo as mulheres, recorrem a cirurgias plásticas altamente arriscadas ou se submete a aplicação de produtos químicos para tornar as mamas e as nádegas mais atraentes numa sociedade de culto a beleza do “corpo perfeito”.

         Com estas breves provocações não estamos, aqui, negando, de nenhuma forma, os benefícios que a atividade física traz para a saúde corporal. Longe de nós querermos questionar esse aspecto, mas é preciso pensar no culto ao “corpo perfeito” numa sociedade altamente diversa e as formas de discriminação, segregação e inferiorização criadas para isolar todos aqueles que fogem aos padrões de beleza de uma ditadura que tenta nos submeter à concepção de um corpo idealizado.

         A adoração ao “corpo perfeito” não é necessariamente um fenômeno recente em nossa História. Na antiguidade grega, por exemplo, todas as pessoas que apresentavam algum tipo de deficiência, sobretudo entre os povos espartanos, cuja população era preparada, desde a mais tenra idade, para as práticas de guerras, eram “[…] sacrificadas, jogadas em abismos ou excluídas para não viver na sociedade” (ROSA, 2011, p. 149), ou seja, o diferente sequer tinha o direito à sua própria existência. Entre os Romanos, a situação não divergia tanto em relação aos gregos, uma vez que os recém-nascidos, por exemplo, com algum tipo de deficiência até os três anos de idade deveriam ser […] “sacrificados, pois se acreditava que todo ser humano deveria ser dotado de perfeição física” (SANTOS; SANTOS; SALES, 2014, p. 6).

         Como a surdez, naquela época, não era identificada imediatamente, as crianças surdas não eram sacrificadas como as demais. Porém, quando se descobria a limitação sonora dessas crianças, elas eram marginalizadas, presas ou mesmo recolhidas às casas asilares como forma de serem excluídas do convívio social. Em algumas situações, como relata Strobel (2006), as crianças com surdez eram até mesmo escravizadas.

          É claro que as formas de punições para os corpos que apresentavam características físicas, mentais e comportamentais diversas daqueles ditos “normais” foram “evoluindo” no decorrer da História. Das tecnologias punitivas dos cadafalsos que ceifavam a vida dos corpos considerados “anormais”, migramos para as práticas de isolamento dos surdos e de todos aqueles que fogem aos padrões de “normalidade” em instituições disciplinares, as quais o filósofo francês, Michel Foucault (1987), as chamou de espaços heterotópicos, nos quais os sujeitos eram resgatados dos seus múltiplos espaços sociais para serem submetidos a regimes de controle e de dominação de modo a transformá-los em corpos dóceis politicamente.

      Mas como todo o exercício do poder e da dominação traz consigo, conforme nos lembra Foucault (1988), as resistências dos corpos, é preciso entender que com o crescimento da massa crítica e intelectualizada de pessoas deficientes dispostas a romperem com os grilhões que as aprisionavam nas casas asilares, surgiram uma série de movimentos reivindicatórios, sobretudo a partir do final da década de 1970, em favor da liberdade dos deficientes, de modo a romper com as barreiras da exclusão social. Um caso emblemático na luta de resistência contra a imposição do poder hegemônico e dominador que objetivava calar e invisibilizar os deficientes dentro dos espaços asilares foi a carta escrita pelo sociólogo e deficiente físico Paul Hunt ao editor do Jornal inglês “The Guardian”, na qual ele denunciava as condições de confinamento e de autoritarismo aos quais os deficientes estavam submetidos, propondo a criação de grupos de trabalhos que pudessem se dedicar, especificamente, às questões dos deficientes. De acordo com Diniz (2007, p. 11), a carta trazia a seguinte mensagem:

Senhor Editor, as pessoas com lesões físicas severas encontram-se isoladas em instituições sem as menores condições, onde suas ideias são ignoradas, onde estão sujeitas ao autoritarismo e, comumente, a cruéis regimes. Proponho a formação de um grupo de pessoas que leve ao parlamento as ideias das pessoas que, hoje, vivem nessas instituições e das que potencialmente irão substituí-las.

       A carta de Hunt pode ser entendida não somente como uma grande denuncia a respeito das péssimas condições físicas em que se encontravam e, infelizmente, ainda se encontram boa parte dos deficientes físicos e mentais custodiados em casas asilares, mas também chama à atenção para a necessidade de se considerar a voz desses indivíduos, isto é, há toda uma defesa em prol da não ridicularização, da não menorização, da não bestialização dos deficientes, visto que eles são perfeitamente capazes de emitirem ideias consistentes a respeito de suas próprias condições.

      O que a carta de Hunt, de certa forma parece tentar abalar, é a concepção cristã surgida no século IV de que os deficientes eram pessoas doentes, fracas e limitadas que precisavam da caridade, dos cuidados e da atenção das instituições “caridosas” que deveriam acolhê-las em espaços apropriados, protegendo-as de todos e contra todos. Essa concepção de proteção cristã parece ter se transformado em uma grande segregação social, a qual os deficientes intelectualizados do final da década de 1980 passaram a questioná-la ao reivindicar o direito deles de serem diferentes na diversidade humana que nos caracterizam.

      O lema dos movimentos de intelectuais deficientes surgidos nesta época se pautava pela famosa expressão: “nada sobre nós, sem nós”, isto é, nenhuma instituição, nenhum sujeito, nenhum político, nenhum religioso, nenhum cientista estava autorizado a direcionar os caminhos dos deficientes, a formular políticas públicas em nome do favorecimento dos deficientes sem as suas participações, visto não quererem mais ser tratados como “coitadinhos”, como pessoas que não possuem uma mínima capacidade crítica e reflexiva para pensarem sobre a sua própria condição existencial.

       Neste sentido, podemos pensar que, da década de 1980 até os dias atuais, as tensões entre os poderes repressivos, estruturados na lógica da homogeneidade, e as resistências libertárias, em prol do reconhecimento da diversidade, tenderam a crescer e isto não significa necessariamente algo negativo, mas, muito pelo contrário, representa um “avanço”, uma vez que durante vários séculos muitos deficientes tiveram que permanecer calados, escondidos, invisibilizados, enclausurados, estocados, isto é, tiveram que deixar de viver para que o dito “corpo normal” não tivesse que passar pela experiência da alteridade, ou seja, pela possibilidade de se colocar no lugar do outro, no lugar do deficiente, no lugar do não idealizado pela sociedade de culto ao “corpo perfeito”.

       O que talvez tenhamos que festejar, neste momento, é o fato de que estamos vivendo um período histórico no qual os discursos de reconhecimento da diversidade se sobrepõem aos discursos de pregação das homogeneidades. Talvez, em nenhum outro momento da História, tenhamos visualizado tantos movimentos de surdos, cegos, cadeirantes, deficientes múltiplos, deficientes mentais, negros, gays, lésbicas e homossexuais reivindicarem o reconhecimento de suas diferenças. Uma particularidade desse momento histórico, cuja inclusão bate às nossas portas, foi a criação de dispositivos normativos pensados não unicamente como forças repressivas, mas sim como instrumentos garantidores do direito às diferenças, uma vez que “[...] o reconhecimento da diferença é o primeiro passo para a inclusão” (RONDON; RODRIGUES; BALTAZAR, 2004, p. 6). Isto quer dizer que os instrumentos não partiram simplesmente da perspectiva de que todos são iguais, até mesmo porque não o somos, mas tentaram pensar no reconhecimento da diferença como algo que nos constitui na diversidade.

2 A INCLUSÃO BATENDO EM NOSSAS PORTAS

        Se estamos partindo da premissa de que a valorização da diversidade está vencendo a quebra de braços contra os discursos e as práticas da homogeneidade ainda tão presente, infelizmente, em nossa sociedade, não podemos perder de vistas o papel da escola na concretização da sociedade inclusiva. A escola certamente é o maior lócus de resistências a todas e a quaisquer formas de dominação e de discriminação. É por meio da educação, da conscientização dos alunos, professores, pais e comunidades que talvez possamos vencer a maior barreira da inclusão de deficientes em nossa sociedade: o preconceito.

        A educação inclusiva tem papel importante na luta contra a discriminação na medida em que ela parte do pressuposto de que todos têm direito a serem quem são. Seu compromisso deve ser, portanto, com a inclusão de todos na escola, tratando-se “[...] não apenas de todos frequentarem a mesma escola, e sim, de frequentarem as mesmas salas de aula. Todos os alunos juntos, independente das suas particularidades” (CELEDON, 2005, p. 5). Contudo, faz-se necessário refletir sobre a confusão terminológica entre os termos “igualdade” e “inclusão”, uma vez que muitos educadores pensam fazer inclusão ao discursarem, em suas salas de aulas, que “[...] na inclusão, todos os alunos são iguais” (LEITE, 2015, p. 8), mas ao se avançar para conhecer os métodos avaliativos; as estratégias de ensino e as formas de comunicação para enfrentarem o desafio da diversidade, percebem-se o despreparo desses professores, visto que as suas aulas são as mais tradicionais possíveis, não se adequando à realidade dos alunos cegos, surdos ou cadeirantes porque a sua metodologia de ensino é toda ela pensada para os “corpos normais”. A igualdade, portanto, é falsa; ela não passa de uma grande falácia.

        Apesar de ainda termos muito trabalho pela frente já que a igualdade, a democracia, a justiça e tantas outras instituições não passam de invenções humanas; espécie de horizonte que deve ser perseguido é inegável os avanços alcançados no Brasil para garantir que os diferentes tenham seus direitos garantidos legalmente e possam ser quem eles são.

        A constituição federal de 1988 caracteriza-se como uma importante porta de entrada para o reconhecimento do direito à diversidade educacional em nosso país. Em seu artigo 6º, o documento revela que todo cidadão brasileiro tem direito à educação, à saúde, à alimentação, ao trabalho, à moradia, ao transporte, ao lazer, à segurança pública e à previdência social (BRASIL, 1988). Nesta ótica, a educação é percebida como um direito básico de qualquer cidadão brasileiro, cabendo ao Estado à responsabilidade de promovê-la da forma mais ampla e democrática possível. O artigo 206, inciso I, da carta magna, parece ser mais específico quando o assunto é igualdade de condições de acesso à educação independente das deficiências que limitam um indivíduo.

      Outro dispositivo normativo que fortaleceu a luta pelo reconhecimento da diferença e da diversidade no seio da comunidade escolar foi a publicação da lei federal 9.394/96, conhecida como Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) que em seu artigo 4º estabelece que é dever do Estado proporcionar “[...] atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, transversal a todos os níveis, etapas e modalidades” (BRASIL, 1996, art. 4).

     O rol de dispositivos normativos que versam sobre a educação inclusiva no Brasil não se encerra necessariamente nestas duas normativas. Ainda no ano de 1994 foi criada a política nacional de educação especial na perspectiva da educação inclusiva que espelhou algumas das principais recomendações da declaração de Salamanca, também publicada no mesmo ano e que se constituiu em um marco extremamente importante para o reconhecimento da urgência de se garantir o direito à educação especial para aqueles que dela necessita.

      No campo da educação de surdos, a conquista legal foi obtida com a promulgação da Lei 10.436, de 24 de abril de 2002 que estabelece a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) como língua oficial no país. Percebam que a libras é uma língua e não uma linguagem, uma vez que ela possui toda uma estrutura linguística semelhante a quaisquer outras línguas; possui variações linguísticas locais e temporais, visto que a língua de sinais “[…] não é uma língua universal e, sendo assim, cada país possui a sua própria língua de sinais” (SANTOS; SANTOS; SALES, 2014, p. 10). Dessa forma, além das variações em âmbito mundial, há, também, variações regionais dentro de um mesmo país como é o caso do Brasil. Aqui, a libras praticada pelos amazonenses certamente possui variações muito diferentes daquela praticada pelos baianos. Dessa maneira, a libras pode ser compreendida como

[...] uma língua visual-espacial utilizada naturalmente em comunidades surdas brasileiras, permitindo expressar sentimentos, ideias, ações e qualquer conceito e/ou signifi­cado para estabelecer interações entre sujeitos. A língua de sinais possui todas as caracterís­ticas linguísticas de qualquer língua humana natural (LACERDA; ALBRES; DRAGO, 2013, p. 68).

     A língua brasileira de sinais não se constitui unicamente como uma língua visual-espacial utilizada pelas comunidades surdas para estabelecerem comunicações entre si, mas representa também um patrimônio cultural; uma identidade de compartilhamento de valores coletivos de uma cultura; um instrumento de pertencimento a um determinado grupo social, sendo que essa concepção de língua corroborou para a abertura de muitas outras portas de inserção e fixação da educação de surdos em nosso país como o próprio reconhecimento do bilinguismo, no qual as nossas escolas precisaram se lançar ao desafio de dominar não apenas a fala e a escrita da língua portuguesa, mas também a cultural visual-gestual-ideológica-política e social das nossas comunidades surdas expressas na língua de sinais.

     Para dar conta desse desafio novos atores foram convocados, a exemplo dos professores bilíngues; dos instrutores de libras e dos intérpretes de libras. O professor bilíngue é um profissional com formação em nível superior em pedagogia ou licenciatura em áreas específicas. Sua função é ministrar conteúdos específicos do currículo escolar em português e libras, quando necessário, de modo a subsidiar o trabalho desenvolvido pelo intérprete. Já o instrutor de libras, por sua vez, é outro ator fundamental no processo de concretização da utilização de libras em nossas escolas. Esse profissional, conforme rege o decreto federal 5.626/2005, deve possuir graduação em pedagogia bilíngue ou em licenciatura plena em letras/libras. Sua principal função é realizar atividades de formação em libras para toda a comunidade escolar, incluindo os pais e familiares dos alunos surdos. Por fim, mas não menos importante, outro ator de grande relevância nesta empreitada é o intérprete de libras que é um profissional técnico contratado pelas instituições públicas ou privadas de ensino para realizar a mediação entre os usuários da língua de sinais e do português em escolas inclusivas.

       Apesar de esses atores contribuírem para que o diferente possa ser diferente dentro de nossas estruturas escolares que, infelizmente, ainda estão pautadas, fortemente, por uma espécie de cultura homogeneizadora e dominadora, percebe-se que passados 16 anos após a promulgação da lei que reconhece a libras como língua oficial é muito comum encontrar diversas secretarias municipais e estaduais de educação que sequer possuem, em seus quadros funcionais, profissionais concursados para exercerem as funções de professor, instrutor ou intérprete de libras. Muitas delas, em virtude de pressões legais, contratam esses profissionais de forma precária, por meio de contrato administrativo por tempo determinado, não permitindo que eles desenvolvam um trabalho mais consistente que, de fato, contribua para a maior inclusão dos surdos em nosso sistema educacional.

      Para além dessa ausência de concursos públicos voltados para a contratação permanente de professores, intérpretes e instrutores de libras em nossas escolas, nos depararmos, muito frequentemente, com o total despreparo dos nossos professores no domínio ou mesmo no conhecimento básico da língua de sinais. Como as nossas escolas foram imaginadas, idealizadas, concebidas, pensadas, projetadas e construídas para reconhecer apenas os ditos “iguais” e/ou “normais”, invisibilizando todas e quaisquer diferenças existentes no seu interior, os nossos professores operam em uma espécie daquilo que o Bourdieu e o Passeron (1992) chamaram de reprodução das estruturas sociais, isto é, ensinam somente aquilo que aprenderam em seus processos formativos, ou seja, excluem os surdos porque “[...] a formação inicial não os preparou para a diversidade que compõe o cenário atual nas instituições escolares” (LEITE, 2015, p. 13).

        A despeito de todo um conjunto normativo que objetiva garantir que os diferentes sejam diferentes nos espaços escolas, é preciso ressaltar que, lamentavelmente, ainda existem dezenas, centenas e até milhares de professores espalhados por todo o país que certamente se sentem muito frustrados, minimizados, incompetentes e impotentes por não conseguirem se comunicar com os alunos surdos em razão do seu total despreparo no domínio da língua de sinais. Imagine a angustia desses professores que não tem a certeza de que seus alunos surdos compreenderam um determinado conteúdo ou mesmo porque não dispõem de tempo necessário que lhes possibilitem apreender conteúdos relacionados à língua de sinais por terem que se submeter a uma intensa jornada de trabalha, em três turnos ininterruptos, para pagarem, em dias, as suas contas do mês.

       Mas este não é o único problema relacionado à efetivação da educação inclusiva de surdos em nossas escolas. Além do grande despreparo dos nossos professores, contamos, também, com escolas totalmente desaparelhadas para receber não só os surdos, objeto desta breve reflexão, mas cadeirantes, cegos, altistas, superdotados e tantos outros corpos que deveriam ser acolhidos em sua mais plena diversidade. E as limitações não se resumem unicamente aos aspectos físicos das escolas como ausência de rampas para acesso dos deficientes físicos às salas de aulas, mas estende-se, até mesmo, na total ausência de projetos políticos e pedagógicos voltados para os demais tipos de necessidades educacionais especiais. E como resolver essa situação? Há uma receita pronta? Se não há, vamos preferir as lamurias ou vamos às lutas?

3 PEQUENAS PINCELADAS REFLEXIVAS SOBRE A EDUCAÇÃO DE SURDOS

       Trilhar o caminho de luta pelo reconhecimento e fortalecimento da educação em nosso país não é uma tarefa das mais fáceis, isto é, “não é uma tarefa para fracos”, como se diz por aí, no ditado popular. E por que a tarefa é tão desafiadora, assim? Simplesmente porque a instituição escolar está em crise em nosso país. Aproximadamente 90% de toda a nossa educação é gerenciada pelo poder público que sequer oferece salas de aulas dignas para os professores e os alunos exercerem, com dignidade, as suas funções de construção e de difusão de conhecimentos escolares e científicos. É árdua porque nos deparamos com um contingente cada vez maior de professores totalmente desestimulado que, lamentavelmente, abandonam as salas de aulas por conta das péssimas condições de trabalho e baixos salários. Não é uma tarefa para fracos porque os nossos professores e alunos estão frequentemente medicalizados em decorrência das constantes doenças mentais que atingem os nossos trabalhadores no contexto da sociedade do cansaço (HAN, 2015) impulsionando-os a trabalharem cada vez mais sob fortes pressões psicológicas para alçarem as metas corporativas cada vez mais desumanizadas.

     Diante dessa crise anunciada será que ainda é possível pensarmos em uma educação inclusiva dentro da escola? Arriscar uma única ou mesmo algumas prescrições médicas para a “doença” da exclusão, da discriminação e da segregação escolar parece muito arriscado. Corremos, sem dúvida alguma, um grande risco de sermos criticados ao nos interpretarem como aquele que possui “todas as respostas” para os desafios da educação inclusiva, mas, ainda assim, preferimos a crítica ao comodismo de muitos.

     Apesar de a educação inclusiva ainda não ser uma realidade em nossas escolas e talvez ela realmente esteja em um horizonte ainda muito distante, isso não implica que ela deva ser abandonada, desacreditada, esquecida ou desestimulada, mas, muito pelo contrário, ela deve ser perseguida como nos ensina o jornalista e escritor uruguaio, Eduardo Galeano, ao tratar do significado da utopia em nossas vidas.

A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos, e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar (BIRRI apud GALEANO; BORGES, 1994, p. 310).

     A nossa caminhada pelo fortalecimento da educação inclusiva de surdos passa pela necessidade de pensarmos em estratégias de capacitação dos professores no domínio da língua brasileira de sinais. Não é possível continuarmos a conviver com docentes totalmente despreparados no uso da língua de sinais. As Secretarias de Educação precisam se articular com outras instituições de modo a criarem cursos de capacitação em libras que poderiam ser contados para a progressão funcional dos professores, evitando custos adicionais para aqueles que se interessam pelo conhecimento da língua. Faz-se necessário, portanto, institucionalizar a capacitação em libras e não deixá-la a cargo do interesse individual dos docentes que, muitas vezes, se sacrificam para custear suas capacitações.

      Neste processo, a educação a distância deve ser percebida como uma ferramenta de extrema importância para a ampliação da capacitação dos professores na utilização da língua de sinais. Além dos custos serem geralmente mais baixos, quando comparados aos cursos presenciais, a tecnologia permitiria que docentes das mais variadas regiões geográficas do país pudessem participar da capacitação em libras. Contudo, além da oferta de cursos de libras, precisamos defender, arduamente, a contratação, via concurso público, de profissionais especializados no ensino da língua. Os Estados e os Municípios precisam reformular seus planos de cargos e vencimentos de modo a incluírem as funções de instrutor e intérprete de libras no rol das carreiras típicas da administração pública.

     Outro horizonte a ser perseguido está relacionado à possibilidade de criação de um plano nacional de capacitação para secretários e bibliotecários escolares para a efetivação da educação inclusive de surdos em nossas escolas. Nesse plano, os secretários e bibliotecários escolares seriam preparados para utilizarem a língua de sinais em seu dia a dia dentro das escolas, fortalecendo o rol de atores educacionais capazes de se comunicarem com os surdos. Os bibliotecários poderiam aprender a desenvolverem ações culturais voltadas para a comunidade surda, bem como selecionarem material didático específico para atender às demandas informacionais dessa comunidade.

    A cultura da comunidade surda precisa ser, urgentemente, fortalecida em nossas escolas. Ela deve estar viva entre todos nós. Ações articuladas entre governo, sociedade, pais, professores e corpo técnico da escola precisam acontecer o quanto antes. Que tal pensarmos a libras enquanto conteúdo a ser trabalhado de forma transversal a todas as disciplinas do ensino médio? Neste caso, o professor deveria se preparar para ministrar, pelo menos, 10% de todo o conteúdo de sua disciplina na língua de sinais e, desta forma, os alunos não surdos teriam que estudar a libras para entender esse conteúdo e responder as provas da disciplina.

     Já pensaram em uma peça teatral encenada em libras? Neste caso, alunos surdos e não surdos, professores e corpo técnico da escola trabalhariam juntos na escolha do roteiro, na definição dos personagens, na seleção das falas e no conhecimento/aperfeiçoamento de libras. Todos teriam que se esforçar na tentativa de se comunicar com o público que também deveria conhecer a língua de sinais para entender o conteúdo da peça. É claro que esses atores e o público da peça seriam formados pela própria comunidade escolar e representaria mais uma oportunidade para o fortalecimento do uso de libras no interior de nossas escolas.

     A transversalidade de libras no ensino e a peça teatral como recurso didático são apenas algumas estratégias que a comunidade escolar poderia fazer uso para o fortalecimento da cultura surda entre todos nós. Como bem nos disse Eduardo Galeano, a utopia serve para continuarmos a caminhada, ainda que ela não seja tão fácil assim. O horizonte da educação inclusiva de surdos deve servir justamente para nos encorajar a não desistirmos da luta pelo reconhecimento das diferenças em um mundo cada vez mais compartilhado. Eu estou na luta. E você?

REFERÊNCIAS

ARANHA, M. L de A; MARTINS, M. H. P. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 2000.

BOURDIEU, P.; PASSERON, J. C. A reprodução. 3.ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em < www.planalto.gov.br>. Acesso em: 25 Jun. 2018.

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