Casos no Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos sobre os direitos dos povos e comunidades tradicionais: impactos na experiência brasileira
Vanilda Honória dos Santos
Doutoranda em Teoria e História do Direito (CCJ/UFSC)
http://lattes.cnpq.br/5696668630728990
Em artigo publicado no dia 27 de maio de 2020, cujo título é “O paradigma do constitucionalismo multinível e o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos na efetivação dos direitos dos povos e comunidades tradicionais no Brasil”, foi exposto que o direito brasileiro, em relação à jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) e casos em tramitação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ainda tem muito a avançar[1]. De modo mais específico, no que diz respeito à aplicação do direito internacional dos povos e comunidades tradicionais representados pela Convenção 169 OIT (1989) e pela Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) no ordenamento jurídico interno (SANTOS, 2020). Acrescenta-se que as referências às decisões da Corte IDH “são, em grande medida, pouco significativas para causar impacto no direito interno, uma vez que a menção a elas tem como função unicamente a ilustração ou esclarecimento acerca de algum ponto controverso” (GALINDO,MAUÉS; 2014, p. 310).
Diante disso, as referências aqui apresentadas têm o intuito de refletir e verificar em que medida tais decisões tiveram impacto no Judiciário brasileiro numa perspectiva do pluralismo jurídico e do constitucionalismo multinível, ou seja, que considerem as instituições e as comunidades interessadas. Ademais, todos os casos versam sobre povos indígenas, uma vez que os direitos territoriais quilombolas até o momento da pesquisa ainda não haviam sido objeto de ação no Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos (SANTOS, 2020). Seguem-se alguns casos importantes sobre direitos territoriais de povos tradicionais indígenas que tramitaram/am na CIDH e na Corte IDH[2].
Em 01 de fevereiro de 2018, a CIDH submeteu à jurisdição da Corte IDH o caso das Comunidades Indígenas Membros da Associação Lhaka Honhat (Nossa Terra) Vs Argentina[3]. De acordo com o relatório da CIDH, ocorreu por parte da Argentina, o não cumprimento das recomendações da CIDH e a violação do direito à propriedade por não ter provido o acesso efetivo ao título de propriedade sobre o território ancestral, e igualmente, pela demora, considerando que se passaram décadas desde a solicitação de titulação inicial.
O caso Povo Indígena Xukuru e seus membros a respeito do Brasil foi submetido à jurisdição da Corte em 16 de março de 2016, uma vez que o Estado brasileiro não cumpriu as recomendações da CIDH[4]. Os direitos violados neste caso foram: i) a violação do direito à propriedade coletiva pela demora de 7 anos no processo de reconhecimento do território; ii) violação do direito à propriedade coletiva pela falta de regularização total do território ancestral; iii) a violação dos direitos e garantias judiciais e proteção judicial vinculadas com a demora no processo; iv) violação do direito à integridade pessoal e dos membros do povo Xukuru; v) violação dos direitos judiciais e proteção judicial.
O caso Pueblos Kaliña y Lokono Vs Suriname foi enviado pela CIDH à Corte IDH em 26 de janeiro de 2014[5]. Apurou-se que o Suriname violou os direitos dos membros das comunidades dos povos indígenas, sobretudo pela continuidade da vigência de um marco normativo, que impedia o reconhecimento da personalidade jurídica dos povos indígenas impossibilitando o reconhecimento, a proteção e a regularização da propriedade coletiva. Além da violação do direito à propriedade coletiva, as comunidades estavam sujeitas aos impactos da exploração de minérios no território ancestral.
O caso Comunidad Garífura Punto Piedra e seus membros Vs Honduras foi enviado à Corte IDH em 01 de outubro de 2013[6]. Argumentou-se a responsabilidade internacional do Estado de Honduras pela violação do direito à propriedade coletiva da comunidade e pelo fato de não ter dado resposta efetiva à situação. Este caso permite uma comparação com o caso brasileiro, que não tem dado respostas efetivas às demandas pelos direitos territoriais e as frequentes violações de direitos dos povos quilombolas, do campo e da cidade.
Em 2006, a Corte IDH proferiu a decisão sobre o caso Comunidade Indígena Sawhoyamaxa del Pueblo Enxet Paraguay contra a República do Paraguai, que foi favorável aos povos indígenas. A Corte ordenou ao governo que devolvesse as terras aos seus respectivos donos em um prazo de 3 anos, além da implantação de serviços básicos. Em 2017, os membros da comunidade já habitavam o território há 3 anos, contudo, ainda não tinham a titulação das terras, o que dificulta acesso a outros direitos fundamentais (MOVIMENTO REGIONAL POR LA TIERRA, 2016).
Em todos os casos relatados acima, o aspecto em comum é a violação do direito à propriedade coletiva dos povos indígenas por parte dos Estados, o que resulta na não efetivação de outros direitos fundamentais, sendo este o ponto que se equipara à situação dos povos e comunidades tradicionais no Brasil. A seguir, serão expostos dois casos, que são basilares na perspectiva da proposta desta pesquisa, uma vez que abordam o direito à reparação pelos danos causados pelas frequentes violações dos direitos dos povos indígenas e quilombolas.
O primeiro caso é da Comunidade Mayagna (Sumo) AwasTingni Vs. Nicarágua, cuja sentença da Corte IDH é de 31 de agosto de 2001[7]. A Nicarágua violou o direito à propriedade coletiva ao não demarcar as terras comunais da Comunidade, não tomar medidas que assegurassem o direito à propriedade da comunidade e por ter outorgado concessão nas terras da Comunidade sem seu consentimento. Com base nos artigos 1, 2, 21, 25, 50 e 51 da Convenção Americana de Direitos Humanos, a CIDH decidiu que a Nicarágua: i) violou o direito à proteção judicial; ii) violou o direito à propriedade; iii) deve adotar medidas internas para dar efetividade de delimitação, demarcação e titulação de propriedade das Comunidades Indígenas; iv) deve reparar por dano imaterial – investir por 12 meses 50 mil dólares em obras e serviços de interesse coletivo em benefício da comunidade; v) pagar aos membros da Comunidade a quantia de 30 mil dólares a título de gastos e custas em que incorrem os membros da comunidade e seus representantes.
A decisão está em consonância com o que apregoa a Convenção 169 da OIT acerca da violação do direito à propriedade coletiva e do direito à reparação por danos coletivos causados, e do mesmo modo, de acordo com o direito à reparação por dano existencial à personalidade coletiva (SIVA, 2017).
O segundo caso, notadamente importante para uma abordagem de que se faz necessária a reparação aos povos e comunidades tradicionais que tiveram seus direitos violados é o dos Povos Indígenas de Madungandí e Emberá de Bayano e seus membros Vs. Panamá[8]. A sentença da Corte IDH é de 14 de outubro de 2014, tendo o caso sido submetido à CIDH em 26 de fevereiro de 2013.
As violações reconhecidas na sentença que estabelecem estreita relação com a experiência brasileira podem ser assim dispostas: i) violação continuada do direito à propriedade coletiva de seus membros e descumprimento do pagamento de indenizações pela desapropriação e inundação de seus territórios ancestrais para construção de represa hidrelétrica; ii) falta de reconhecimento, titulação e demarcação das terras; iii) falta de proteção dos recursos naturais; iv) falta de promover o efetivo acesso à propriedade coletiva; v) falta de resposta às denúncias de ingerências em seus territórios; vi) violações de direitos e discriminações dos povos Kunas e Emberá. A corte reconheceu ainda a situação continuada no que diz respeito ao descumprimento do pagamento de indenização, o que submeteu à situação de desvantagem grupos de pessoas e comunidades inteiras.
O eixo que norteou os votos favoráveis à improcedência da ação e pela constitucionalidade do Decreto n. 4.887/2003 no julgamento da ADI 3.239 no Supremo Tribunal Federal está em conformidade com a interpretação dada pela CIDH e pela Corte IDH sobre o direito à propriedade coletiva dos povos e comunidades tradicionais. E de igual maneira com a proposta de reparação por dano existencial coletivo aos membros dos povos e comunidade tradicionais. Resta dar efetividade no campo concreto conforme a realidade das comunidades tradicionais no Brasil.
O direito estatal trata a questão do direito ao território unicamente na perspectiva da propriedade privada e das grandes corporações econômicas, desconsiderando a natureza coletiva dos povos e comunidades tradicionais, fortemente ligados ao território, aos bens e recursos comuns, ao patrimônio material e imaterial e à conservação ambiental. Dessa reflexão surge uma questão que norteará reflexões posteriores, e já vem, em certa medida, preocupando parte dos juristas: Qual o lugar dos bens e recursos comuns no ordenamento jurídico brasileiro?
Em suma, os casos aqui retratados podem contribuir para uma reflexão acerca da efetivação dos direitos dos povos e comunidades tradicionais e da reparação pelas constantes violações desses direitos na experiência brasileira, sobretudo os direitos territoriais, levando em consideração o direito internacional e a necessidade de reconhecer a existência de um pluralismo jurídico para além do direito do Estado.
Referências
BRASIL. Decreto 4.887/2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2003/d4887.htm. Acesso em: 20 out. 2018.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (STF). Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.239 (2003). Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2227157. Consultado em 03 mai. 2020.
GALINDO, George Rodrigo Bandeira; MAUÉS, Antonio. O caso brasileiro. In George Rodrigo Bandeira Galindo, René Urueña, Ainda Torres Pérez (Coordenadores). Proteção Multinível dos Direitos Humanos. Manual. Barcelona: Rede Direitos Humanos e Educação Superior, 2014, p. 289-312.
MOVIMENTO REGIONAL POR LA TIERRA. Estudio de Caso Comunidad Indígena Sawhoyamaxa Historia de lucha y reivindicación territorial em el Chaco paraguayo. 2016. Diponível em: https://www.porlatierra.org/docs/7de6f97752b32890cf0487fef710c62c.pdf Acesso em: 02/04/2018.
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS (OEA). Convenção Americana de Direitos Humanos (1969). Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm. Acesso em: 27 mai. 2020.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Convenção 169 sobre os Povos Indígenas e Tribais (1989). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm. Acesso em: 20 out. 2018.
SANTOS, Vanilda Honória dos. Os direitos territoriais dos Povos e Comunidades Tradicionais: Quilombos no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba – Minas Gerais. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito). Faculdade de Direito Prof. Jacy de Assis da Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia, 2018, 72f.
SANTOS, Vanilda Honória dos. O paradigma do constitucionalismo multinível e o Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos na efetivação dos direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais no Brasil. Gestão Universitária, 27/05/2020. Disponível em: http://www.gestaouniversitaria.com.br/artigos/o-paradigma-do-constitucionalismo-multinivel-e-o-sistema-interamericano-de-protecao-dos-direitos-humanos-na-efetivacao-dos-direitos-dos-povos-e-comunidades-tradicionais-no-brasil. Acesso em: 03 jun. 2020.
SILVA, Rodrigo de Medeiros. Dano existencial coletivo às comunidades tradicionais, com ênfase nas comunidades quilombolas e indígenas. Porto Alegre: Instituto de Pesquisa Direito e Movimentos Sociais, 2017.
[1] O presente texto é parte da pesquisa que originou o Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação em Direito “Os Direitos Territoriais dos Povos e Comunidades Tradicionais: Quilombos no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba – Minas Gerais” na Faculdade de Direito Prof. Jacy de Assis da Universidade Federal de Uberlândia – Minas Gerais, defendido e publicado em 2018. Disponível em: https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/24012. Acesso em: 25 mai. 2020.
[2] Cabe destaque o fato de que a pesquisa aqui exposta foi realizada em base de dados do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos (Comissão Interamericana de Direitos Humanos e Corte Interamericana de Direitos Humanos) em 2018. É possível que, hodiernamente, os casos relatados tenham encaminhamento diverso do disponível no recorte temporal da pesquisa.
[3] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (OEA). Caso 12.094, Comunidades Indígenas Miembros de la Asociación Lhaka Honhat (Nuestra Tierra) Vs. Argentina. 23 de fevereiro de 2018. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2018/035.asp. Acesso em: 02/04/2018
[4] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (OEA). Caso 12.728, Povo Indígena Xukuru e seus membros Vs. Brasil. 2016. Disponível em: http://www.cidh.oas.org/annualrep/2009sp/Brasil4355- 02.sp.htm Acesso em: 02/04/2018.
[5] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (OEA). Caso No. 12.639, Pueblos Kaliña y Lokono Vs. Surinam. 2014. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2014/009.asp. Acesso em: 02/04/2018.
[6] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (OEA). 2013. Caso Nº 12.761 Comunidad Garífuna Punta Piedra y sus membros Vs. Honduras. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2013/076.asp. Acesso em: 02/04/2018.
[7]CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (OEA). Caso de la Comunidad Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicaragua. Sentença de 31 de agosto de 2001. Diponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_79_esp.pdf. Acesso em: 02/04/2018.
[8] CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (OEA). Caso de la Comunidad Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicaragua. Sentença de 31 de agosto de 2001. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/Seriec_79_esp.pdf. Acesso em: 02/04/2018.