23/12/2014

Confluências discursivas e (im) produtivas resistências(s) em educação

 

Confluências discursivas e (im) produtivas resistências(s) em educação

 Gabriel dos Santos Kehler[1]

 

Resumo

Dialogam-se em caráter de revisão teórica, naturalizações discursivas do crédulo da humanização do capitalismo.  Assim, em meio a confluídas oscilações, proposita-se na perspectiva crítico freireana, reelaborações políticas no sentido da práxis.

Palavras-Chave: Naturalizações Discursivas. Proposições Críticas. Humanização.

Projeções Iniciais

       Este estudo intenta algumas problematizações no campo discursivo, do qual decorrem naturalizações de relações sociais, próprias da sociedade contemporânea neoliberal, como: a) democracia, b) humanização do capitalismo e c) resistência. Tripé, que em constante confluência[2], devido aos tempos de expansão da lógica mercadológica, se metamorfoseia em âmbitos ilimitados, em que discursos de projetos sociais até então opostos (capitalismo-socialismo) se fundem, disputando o capital.

       Destarte, sob a análise contundente da perspectiva crítica de Paulo Freire, proporemos a possibilidade de um olhar para além das naturalizações, pois compreendemos a importância do pensamento de Freire para o contexto educacional brasileiro e mundial, de maneira que ele reelaborou um sentido práxis sob o real, de problematização acerca dos processos políticos e pedagógicos instaurados principalmente na sociedade latino-americana. Ressalta-se que não concebemos Freire como um romântico banalizado nos processos humanizadores, como muitos assim o propagaram e reproduzem até hoje, mas como aquele que soube ler a realidade política e social, particularmente brasileira, e propor possibilidades para uma luta de bases populares por meio da educação. Educação não ingênua, não pautada apenas na escolarização, mas como transformação social.

        Delimitando o campo do qual se dialoga, se faz necessário na sequência expor argumentos que balizem tal defesa argumentativa, como uma forma de sistematizar alguns pontos e assim, contribuir para a problematização de forma a discutir na perspectiva freireana, e apontar proposições nos sentidos crítico-emancipatórios.

 

Naturalizações do termo democracia: sentidos distintos

            No caso brasileiro o termo democracia se constitui no caráter dos significados, como algo inquestionável, um avanço da sociedade civil, pois simboliza a ruptura com um “longo e doloroso processo sombrio”, no que concernem principalmente as liberdades individuais, como foi o caso da Ditadura Militar (1964 a mais ou menos 1985). Nesse caso específico brasileiro/latino americano, a democracia se materializou com a Constituição Federal de 1988, em tempos que a democracia, agora no âmbito dos sentidos, se naturaliza com a mundialização do capital, com o discurso de globalização.

            Desse modo, argumentar sobre democracia possibilita uma vasta gama de interpretações, pois para uma lógica mercadológica, é em nome da democracia que se propaga a “ditadura do capitalismo” (contradição velada) como lógica insuperável ao capital e todas as consequências discursivas, assim como fadação a essa única lógica de ‘socialização’.

            Em contribuição argumentativa, concorda-se com a professora de ciência política da Universidade de York – Toronto, Ellen Wood (2003), que ao enfatizar essa relação entre capitalismo e democracia, provoca:

 

[...] o capitalismo é - em sua análise final - incompatível com a democracia, se por ‘democracia’ entendermos tal como o indica sua significação literal, o poder popular ou o governo do povo. [...] o capitalismo é estruturante antiético em relação à democracia, em princípio, pela razão histórica mais óbvia: não existiu nunca uma sociedade capitalista na qual tenha sido atribuído à riqueza um acesso privilegiado ao poder. Capitalismo e democracia são incompatíveis também, e principalmente, porque a existência do capitalismo depende da sujeição aos ditames da acumulação capitalista e às “leis” do mercado das condições de vida mais básicas e dos requisitos de reprodução social mais elementares, e esta é uma condição irredutível (WOOD, 2003, p. 382).

 

            A autora, ao abordar as relações entre democracia e capitalismo, ainda afirma que “[...] toda prática humana que possa ser convertida em mercadoria deixa de ser acessível ao poder democrático. Isso quer dizer que a democratização deve ir à mão da ‘desmercantilização’. Mas desmercantilização por definição significa o final do capitalismo” (ibidem, p. 382). Logo, como a democracia no seu sentido mercadológico, permite ser desenvolvida ao lado dos modos de produção capitalistas, há uma forte “tendência” seja no âmbito das teorizações filosófico-sociais e principalmente das propagações midiáticas de haver a possibilidade gradual de humanização do capitalismo. Ponto que agora se problematiza.

 

Humanização do capitalismo?

            Uma crença embalada palas tantas reformas socioeconômicas e educacionais[3], incisivamente a partir dos anos de 1990 com a expansão do neoliberalismo[4], com a aparência salvadora, o culto das liberdades democraticamente individuais, acaba muitas vezes, por “maquiar” as falhas e defeitos estruturais do capital, deslocando os sentidos da crise, corroborando para a “falácia do Estado mínimo”. Definição falaciosa, porque a configura-se como realidade de “Estado mínimo para as políticas sociais e de Estado máximo para o capital” (PERONI, 2003).

            Assim, reforçar-se a necessidade de uma solidariedade (um culto humanizador) por parte da sociedade civil para com as responsabilidades sociais.  E no caso educacional, entram em cena a inserção de medidas, como os “Amigos da Escola”, “Educação Para Todos”, e toda a enxurrada de parceiros (fusão público e privado) e de programas de governo, para “qualificar” a educação. Desse modo, Ricardo Antunes (2009) destaca, que “[...] a essa crise procurou enfrentá-la tão somente na sua superfície, na sua dimensão fenomênica, isto é, reestruturá-la sem transformar os pilares essenciais do modo de produção capitalista” (p. 38). Contribuindo com a discussão, pode-se constatar na assertiva do filósofo húngaro Meszáros (2005) que:

[...] a estratégia reformista de defesa do capitalismo é de fato baseada na tentativa de postular uma mudança gradual na sociedade através da qual se removem defeitos específicos, de forma a minar a base sobre a qual a reivindicações de um sistema alternativo possam ser articuladas. Isso é factível somente numa teoria tendenciosamente fictícia, uma vez que as soluções preconizadas, as “reformas”, na prática são estruturalmente irrealizáveis dentro de uma estrutura estabelecida de sociedade. Dessa forma torna-se claro que o objeto real do reformismo não é de forma alguma aquele que ele reivindica para si próprio: a verdadeira solução para os inegáveis defeitos específicos, mesmo que o modo planejado para lidar com eles seja reconhecidamente (mas de forma a isentar a própria responsabilidade) (p. 62).

 

            Percebe-se que humanizar o capitalismo, com reformas superficiais e de certa forma enganosas, é um dos caminhos para naturalizá-lo sem o sentido “crítico-político”, em que os preceitos de cidadania ficam comprometidos, como ato de resistência transformadora ao que está posto como lógica societária. Processo, relacionado diretamente com ações educativas (formais e informais), deve ser constantemente problematizado, e aqui Paulo Freire revitaliza-se em virtude de seu viés dialógico, crítico e libertador, ora subversivos, que possibilitam um outro olhar - para a educação e a  a própria humanização do homem e suas relações, como processo emancipatório.

 

Resistências em Freire: fissuras plausíveis

            Ao contextualizar suscintamente algumas confluências das relações discursivas configuradas no termo democracia, em tempos de reestruturação produtiva do trabalho[5], compreendemos ser fundamental radicalizar o(s) sentido(s) de resistência(s), pois se fazem necessários contínuos processos de lutas, em meio ao seu esvaziamento e naturalização. Assim, recorremos a Paulo Freire, pois uma de suas características está justamente na luta por uma educação no seu sentido mais amplo e não apenas por escolarização, buscando uma educação que valorize os sujeitos (homens e mulheres do mundo comum) na sua completude e que dialogue com estes na constituição de processos educativos emancipatórios e democráticos. Ademais, salienta-se na compreensão do filósofo Adolfo Sánchez Vázquez, crítico ao pragmatismo engessador do pensamento à transformação (2011, p. 33), que

[...] o homem comum e corrente é um ser social e histórico; isto é, encontra-se imerso em uma rede de relações sociais e enraizado em um determinado terreno histórico. Sua própria cotidianidade está condicionada histórica e socialmente, e o mesmo se pode dizer da visão que tem da própria atividade prática. Sua consciência nutre-se também de aquisições de toda espécie: ideias, valores, juízos e preconceitos etc.

             Nesse movimento Freire contribui, pois sempre objetivou superar as formas hegemônicas e hierárquicas de pensar a educação e a sociedade, logo, uma transformação nos seus pilares, desde uma vinculação as teorizações postuladas no campo marxista às ditas pós-marxistas. Por isso, uma preocupação incisiva sobre processos de práxis como transformação, que aqui salienta-se:

[...] referimo-nos, portanto, à atividade prática social, transformadora que responde a necessidades práticas e implica certo grau de conhecimento da realidade que transforma e das necessidades que satisfaz. Mas mesmo assim, a prática não fala por si mesma, isto é, não é diretamente teórica (VÁZQUEZ, 2011, p. 260).

            Desse modo, as proposições e ideias freireanas destacam-se por partirem em termos de análise com o “pé no chão”, pelas características peculiares de pensar com a sociedade a/na educação, de maneira a elaborar concepções epistemológicas pautado na produção do conhecimento dialogicamente, intersubjetivamente e dialeticamente, partindo sempre do dinamismo da realidade, refletindo e voltando-se a ela para transformar. Uma pedagogia forjada com os sujeitos e não para os sujeitos, numa luta incessantemente humana. Uma cultura educativa que Paulo Freire queria para o povo, não para que este saísse de sua condição de oprimido para uma condição de opressor, mas que o povo conscientizasse-se, resistindo, acerca das estruturas sejam elas políticas, sociais, culturais e econômicas, ou seja, nas palavras de Freire não basta saber ler que “Eva viu a uva, mas se faz necessário compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho” (FREIRE, 1991).

            Nesse sentido, faz-se mister constituir um tempo e espaço de resistência(s), mais que necessidade, mas como uma função social, que pode reconfigurar um quadro de lutas e alternativas para uma outra sociedade, outro viés de educação e humanização.         Nessa perspectiva, Frigotto (1993) destaca:

[...] educar neste contexto é explicitar criticamente as relações sociais de produção da sociedade burguesa, para pôr-se a caminho de sua desarticulação e criar as condições objetivas para que se instaure um novo bloco histórico onde não haja exploradores e explorados, proprietários e não proprietários, e que, pelo trabalho, mediatizado pela técnica, os homens produzam sua existência de forma cada vez mais completa (1993).

            Na composição de uma educação libertadora e emancipatória, os sujeitos que já ocupam um lugar social (conscientemente, ou não) são chamados a pensar sobre essas relações e como se estabelecem. Nas palavras de Paulo Freire (1983, p. 27):

Conhecer não é ato através do qual um sujeito transformado em objeto recebe dócil e passivamente os conteúdos que outro lhe dá ou lhe impõe. O conhecimento pelo contrário, exige uma presença curiosa do sujeito em face do mundo. Requer sua ação transformadora sobre a realidade. Demanda uma busca constante, implica em invenção e reinvenção. (grifo nosso).

            Compreendendo essas confluídas oscilações, proposita-se na perspectiva crítico freireana, reelaborações políticas no sentido da práxis, pois essa indissociação entre teoria e prática, é que leva a coerência do que se discursivisa e se efetiva em ações. Relação inegavelmente importante para Paulo Freire, que soube como poucos, ser um homem, um estudioso e um crítico da razão e emoção (sem a supremacia de um para com o outro), movido por uma incessante ânsia em transformar.

 

Considerações Finais

            Ao ponto de ter que encerrar a discussão para o momento, salienta-se que esta se configura como uma breve tentativa em discutir a perspectiva freireana, dialogando com e sobre o mundo em sua complexidade, no campo bibliográfico. Para tal, enfocamos a abordagem da tríade: democracia, humanização do capitalismo e resistência, como uma preocupação em demonstrar que as microestruturas e macroestruturas oscilam constantemente, e uma não anula a outra, ao contrário, se complementam em termos de análise, por tratar-se de um processo essencialmente dialético.

            Especificamente na abordagem sobre a indagação denominada “humanização do capitalismo”, observa-se que a confluência discursiva que se instaurou sob o termo democracia possibilitou que ideologias hegemônicas, como a expansão do neoliberalismo, se apropriasse do termo, naturalizando seu entendimento e parecendo estar falando sobre a mesma coisa. Nesse caso, desloca-se dos sentidos atribuídos originalmente quando postulado junto aos movimentos de base na reivindicação pelo fim da Ditadura Militar no Brasil.

            Diante desse desastroso e perverso “reformado modelo capitalista”, busca-se por possibilidades de fissuras com inspirações em Paulo Feire, compreendendo sua proposta político-pedagógica, como uma verdadeira revolução cultural e social, de modo que se possibilitou leituras distintas para a humanização da sociedade, considerando ora o contexto de meados da metade do século XX e ora a contemporaneidade. Mas, é possível afirmar que a educação enquanto um processo histórico vai sendo tecida por Freire em toda suas obras, de maneira a conceber homens e mulheres como inacabados, que podem “ser mais” se humanizando.  Ou seja, sujeitos que buscam de modo esperançoso e crítico, não romântico, constituir uma sociedade mais ética e cidadã.

 

Referências

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2009.

FREIRE, Paulo. A Educação na Cidade. São Paulo: Cortez, 1991.

____________. Educação e Mudança. 6ª edição, São Paulo: Paz e Terra, 1983.

FRIGOTTO, Gaudêncio.  A Produtividade da escola improdutiva: um (re) exame das

relações entre educação e estrutura econômico-social e capitalista. 4. ed. São Paulo:Cortez, 1993.

MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005.

PERONI. Vera Maria Vidal. Política educacional e papel do Estado no Brasil dos anos 90. São Paulo: Xamã 2003.

SAVIANI, Dermeval. Transformações do Capitalismo, do Mundo do Trabalho e da Educação. In: LOMBARDI, José Claudinei; SAVIANI, Dermeval e SANFELICE, José Luís (Orgs.). Capitalismo, Trabalho e Educação. Campinas, SP: Autores Associados, HISTEDBR, 2002, p. 13-24.

VÁSQUEZ, A. S. Filosofia da práxis – 2ª ed.- Bueno Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales- Clacso: São Paulo: Expressão Popular, 2011.

WOOD, Ellen Weiksins. Democracia contra Capitalismo: a renovação do metabolismo histórico. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.

 

[1] Estudante do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Nível: Doutorado. E-mail: gabkehler@gmail.com

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[2] Para Dagnino (2004) as confluências discursivas “[...] assumem então o caráter de uma disputa de significados para referencias aparentemente comuns: participação, sociedade civil, cidadania, democracia. A utilização dessas referências, que são comuns nos abrigam significados muito distintos, instala o que pode chamar de crise discursiva: linguagem corrente, na homogeneidade de seu vocabulário, obscurece diferenças, dilui nuances e reduz antagonismos” (2004, p. 142).

 

[3]“[...] entram em cena as reformas educativas ditas neoliberais que se encontram em andamento. Sob a inspiração do toytismo, busca-se flexibilizar e diversificar a organização das escolas e o trabalho pedagógico, assim como as formas de investimento. Neste último caso, o papel do Estado torna-se secundário e apela-se para a benemerência e voluntariado. Em ambos os períodos, prevalece a busca pela produtividade guiada pelo princípio de racionalidade, que se traduz no empenho em se atingir o máximo de resultados com o mínimo de dispêndio. Para esse fim, o Estado, agindo em consonância com os interesses dominantes, transfere responsabilidades, sobretudo no que se refere ao financiamento dos serviços educativos, mas concentra em suas mãos as formas de avaliação institucional. Assim, também na educação aperfeiçoam-se os mecanismos de controle inserindo-se no processo mais geral de gerenciamento das crises no interesse da manutenção da ordem vigente” (SAVIANI,2002, p.23).

 

[4]Em resposta à sua própria crise, a alternativa encontrada foi reestruturar o capital, através de seu sistema ideológico político dominante, que basicamente consistiu no “[...] advento do neoliberalismo, com a privatização do Estado, a desregulamentação dos direitos do trabalho e a desmontagem do setor produtivo estatal [...] seguiu também um intenso processo de reestruturação produtiva da produção e do trabalho, com vistas a adotar o capital do instrumental necessário para tentar repor os patamares de expressões anteriores” (ANTUNES, 2009, p. 33).

 

[5] “O início da década de 1970, marca-se um preocupante diagnóstico, como aponta Antunes (2009), que o parafraseando, dar-se-á após um longo período de acumulação de capitais, que ocorreu durante o apogeu do fordismo e da fase Keynesiana, o capitalismo, começa a dar sinais de um quadro crítico, como: queda da taxa de lucros; o esgotamento no padrão de acumulação taylorista/fordista de produção; hipertrofia da esfera financeira; fusão de empresas monopolista e oligopolistas; o que estimulou a concentração de capitais; a crise do Welfare State ou do “Estado do bem-estar-social”.

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