04/11/2025

Desigualdades, Formação Docente e Políticas de Alfabetização: Um Olhar Crítico sobre o Cenário Brasileiro Atual

Por - Ivan Carlos Zampin: Professor Doutor, Pesquisador, Pedagogo, Graduado em Educação Especial, Docente no Ensino Superior, Ensino Fundamental, Médio, Gestor Escolar e Especialista em Gestão Pública.

Currículo Lattes: CV: http://lattes.cnpq.br/2342324641763252

 

A alfabetização, compreendida como um direito educacional e social, representa um dos pilares fundamentais para a formação cidadã e para a democratização do acesso ao conhecimento. No Brasil, o debate acerca da alfabetização tem sido marcado, historicamente, por disputas teóricas, pedagógicas e políticas, refletindo modelos diferenciados de concepção de ensino e de compreensão da linguagem. Paralelamente a esse processo, a partir das últimas décadas, desenvolveu-se no campo da educação brasileira a noção de letramento, que amplia a alfabetização para além do domínio técnico da leitura e da escrita, enfatizando seu caráter social, cultural e prático. Nesse sentido, alfabetizar não se configura apenas como ensinar códigos de decodificação, mas como promover a inserção ativa dos sujeitos nas práticas sociais mediadas pela linguagem escrita.

A emergência do conceito de letramento no Brasil, fortemente influenciada pelos estudos de Magda Soares, Kleiman e Tfouni, contribuiu para deslocar a compreensão tradicional da alfabetização puramente mecânica, baseada na memorização de grafemas e fonemas. Soares (2003) argumenta que alfabetizar e letrar são processos distintos, mas indissociáveis, na medida em que a alfabetização diz respeito ao domínio do sistema de escrita, enquanto o letramento concerne ao uso efetivo e funcional da língua escrita em contextos culturais. Ferreiro e Teberosky (1999), por meio das pesquisas sobre a psicogênese da língua escrita, demonstraram que a aprendizagem da escrita é um processo construtivo de elaboração de hipóteses, desmistificando a ideia de que aprender a ler e escrever seria uma simples relação entre estímulo e resposta. Paulo Freire (1989), por sua vez, destaca que a alfabetização deve estar vinculada ao processo de conscientização e leitura crítica do mundo, afirmando que ler a palavra é também ler a realidade histórica e social.

Contudo, apesar dos avanços conceituais, o cenário da alfabetização no Brasil apresenta desigualdades persistentes. Dados do SAEB (INEP, 2021) apontam que uma parte significativa dos estudantes conclui o 3º ano do Ensino Fundamental sem atingir níveis básicos de proficiência em leitura e escrita. Esse cenário se agravou com a pandemia da COVID-19, que ampliou disparidades educacionais regionais e socioeconômicas já existentes. A crise sanitária evidenciou ainda mais a fragilidade das redes de ensino em termos de infraestrutura, formação docente, acompanhamento pedagógico e condições de trabalho, demonstrando que a garantia do direito à alfabetização não pode ser desvinculada da garantia de condições dignas de ensino.

Foi nesse contexto que se instituiu o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada (CNCA), política pública em vigor desde 2019 e que visa assegurar que todas as crianças estejam alfabetizadas até o final do 2º ano do Ensino Fundamental. O CNCA se estrutura sobre princípios de colaboração entre União, Estados e Municípios, enfatizando formação continuada de professores, distribuição de materiais didáticos, ampliação de acervos literários, implementação de avaliações diagnósticas e acompanhamento pedagógico. A proposta retoma experiências exitosas anteriores, como o Programa Alfabetização na Idade Certa (PAIC), no Ceará, reconhecido internacionalmente pelos avanços significativos nos índices de alfabetização e pela consolidação de políticas integradas de formação e monitoramento pedagógico.

Entretanto, a implementação do CNCA enfrenta desafios estruturais. O primeiro deles diz respeito à formação docente. Libâneo (2012) sustenta que a formação inicial no Brasil, muitas vezes desvinculada da realidade escolar e pautada por currículos fragmentados, não prepara o professor para enfrentar a complexidade da alfabetização. A formação continuada, por sua vez, quando ocorre, frequentemente assume caráter pontual, desarticulado das práticas de sala de aula e sem acompanhamento pedagógico consistente. Soma-se a isso a precarização do trabalho docente, marcada por baixos salários, múltiplas jornadas e condições de trabalho que geram desgaste emocional e dificultam a reflexão pedagógica.

Outro ponto crítico diz respeito às desigualdades regionais. Enquanto municípios com maior financiamento e tradição de gestão educacional consolidada conseguem estruturar políticas eficazes, muitas redes municipais, sobretudo nas regiões Norte e Nordeste, enfrentam dificuldades em manter equipes pedagógicas estáveis, promover formação continuada e garantir acesso a materiais didáticos de qualidade. Embora o CNCA proponha regime de colaboração, sua efetivação depende de compromisso político real e de investimentos adequados, o que nem sempre ocorre de maneira equânime entre os entes federados.

Além disso, o conceito de alfabetização adotado pelas políticas públicas precisa estar articulado ao conceito de letramento para evitar retrocessos. A pressão por resultados mensuráveis em avaliações externas pode gerar práticas pedagógicas reducionistas, focadas apenas no treinamento de habilidades mínimas de decodificação, em detrimento de práticas de leitura significativa, interpretação crítica e produção textual. Mortatti (2004) alerta que políticas de alfabetização frequentemente oscilam entre perspectivas tecnicistas e sociointeracionistas, refletindo disputas políticas e ideológicas que incidem diretamente sobre o trabalho docente.

Nesse sentido, defender uma alfabetização que incorpora o letramento significa reconhecer que a leitura e a escrita não se aprendem isoladas da prática social. Significa compreender que a literatura infantil deve estar presente no cotidiano escolar, que os alunos precisam ler textos reais, ouvir histórias, produzir textos com sentido, interpretar o mundo, estabelecer relações entre linguagem e identidade. Freire (1989) enfatiza que alfabetizar é libertar, é criar condições para que o sujeito seja autor de si e do mundo. Assim, uma política eficaz de alfabetização não pode desconsiderar a dimensão humana e cultural do ato de ler e escrever.

Todavia, há avanços que merecem destaque. O CNCA, ao retomar a centralidade da alfabetização e criar metas claras, possibilitou que estados e municípios reorganizassem suas estratégias pedagógicas. Experiências bem-sucedidas em diversas redes demonstram que a articulação entre formação docente sistemática, acompanhamento pedagógico contínuo e uso de avaliação diagnóstica formativa pode produzir resultados significativos. O sucesso do PAIC no Ceará, por exemplo, evidencia que políticas de Estado, quando sustentadas ao longo do tempo, conseguem transformar indicadores educacionais em larga escala.

Conclui-se que o Compromisso Nacional Criança Alfabetizada representa um importante passo na defesa do direito à alfabetização, mas sua efetividade depende de fatores fundamentais, tais quais: valorização e formação dos professores, fortalecimento do regime de colaboração federativa, garantia de financiamento adequado, promoção de equidade e implementação de práticas pedagógicas fundamentadas em concepções teóricas consistentes. Alfabetizar plenamente é garantir condições para que a criança não apenas aprenda a ler e escrever, mas que se torne leitora do mundo, protagonista de sua história e sujeito de sua própria formação. Uma sociedade verdadeiramente democrática se constrói com cidadãos críticos, conscientes e letrados, capazes de interpretar a realidade e agir para transformá-la.

Referências Bibliográficas.

BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
BRASIL. Ministério da Educação. Compromisso Nacional Criança Alfabetizada. Brasília, 2019.
CAGLIARI, L. Alfabetização & Linguística. São Paulo: Scipione, 2009.
FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. A psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artmed, 1999.
FREIRE, P. A Importância do Ato de Ler. São Paulo: Cortez, 1989.
INEP. Relatório SAEB 2021. Brasília: MEC, 2021.
KLEIMAN, A. B. Os significados do letramento. Campinas: Mercado de Letras, 1995.
MORAIS, A. Alfabetização: A questão dos métodos. São Paulo: Contexto, 2012.
MORTATTI, M. Os sentidos da alfabetização. São Paulo: Unesp, 2004.
SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
TFOUNI, L. Letramento e Alfabetização. São Paulo: Cortez, 2010.

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