10/11/2016

Direitos humanos, combate à pobreza e a necessária desigualdade

Nilton Bruno Tomelin

 

Introdução

A pobreza está longe de ser uma simples condição a que algum (grupo) humano tenha sido lançado por seu demérito ou um Estado natural que adquira dimensão tal, que não comprometa seriamente sua condição de ser e existir. A condição de pobreza, não é senão um estado de materialização da miséria, na qual desconhece-se qualquer resquício de dignidade a que todo o ser humano tem direito.

Assim a consolidação do direito como instrumento de combate à pobreza, implica na luta imensurável para que a humanidade seja um valor implícito em todos os direitos. Humanizar pela via do direito não pode ser uma caminha que se omita da preservação da desigualdade como forma de conferir à cada sujeito sua essencial dignidade. A desigualdade, nesta perspectiva não alude-se às oportunidades, mas aos caminhos a que cada ser humano deseja seguir.

Ora, um dos limitadores de oportunidades é a pobreza, senão o seu maior. Por meio dela tende-se a fazer com que todos façam as mesmas escolhas e percorram a mesma caminhada, sem no entanto possuir os mesmo instrumentos de luta. Mais do que servir de instrumento de resolução de conflitos, o direito há de servir como balizador de oportunidades e constante vigilante na preservação da dignidade a que todos os seres humanos tem direito.

 

As interfaces: discussões teóricas

O zelo pelos direitos humanos, é essencialmente uma atitude de preservação do ser humano e das condições lhe permitem viver sua humanidade.  Neste sentido RAMOS (2012, p. 31) assevera que “os direitos humanos asseguram uma vida digna, na qual o indivíduo possui condições adequadas de existência, participando ativamente da vida de sua comunidade”. Por tal participação, compreende-se uma contribuição substancial através de suas potencialidades num projeto ético em que todos pudessem caber, independentemente de suas habilidades e limitações. Ao mesmo tempo é garantia de que receberá o que lhe for necessário para habilitar-se a uma vida feliz, por isso digna. E dignidade não é pouca coisa. Trata-se de um valor de uma supremacia análoga à sua complexidade, uma vez que cada ser humana compreende, deseja e sente a dignidade de uma forma única, emergindo em sua própria identidade.

Há Estados, como o brasileiro, que inscreveram a dignidade entre seus princípios constitucionais, numa postura ousada e necessária, no processo de evolução do conceito de Estado Democrático de Direito. No caso brasileiro, a dignidade, citada no inciso III do artigo 1º da Constituição Federal de 1988,  é considerada conquistada a partir de numerosos direitos igualmente inscritos no mesmo texto constitucional nos 78 incisos do artigo 5º. Neles estão descritos os direitos humanos fundamentais atribuídos a um Estado que respeita seus cidadãos. Acerca da interface entre direitos humanos e dignidade humana CHIMENTI, CAPES e ROSA, 2008, p. 46 reputam que “os direitos humanos podem ser conceituados como prerrogativas inerentes à dignidade humana que são reconhecidas na ordem constitucional dos Estados”. Portanto, se é difícil dimensionar o quanto um Estado respeita a dignidade dos seus cidadãos, o mesmo não ocorre quando ser quer compreender o contrário. Qualquer contradição ao texto constitucional citado representa a dimensão do desrespeito.

Por ser parte do texto constitucional, instrumento supremo do direito do Estado que se vê regido por ela, o (des)respeito ao que está nele contido é de responsabilidade do próprio Estado. Por esta razão a inclusão da dignidade e dos direitos interfásicos no teor da Carta Magna assume um caráter de compromisso extremo e de uma responsabilidade somente suportável por um Estado efetivamente democrático, justo e solidário. A este respeito BOBBIO (1998, p. 31) afirma que

Quando os direitos do homem eram considerados unicamente como direitos naturais, a única defesa possível contra a sua violação pelo Estado era um direito igualmente natural, o chamado direito de resistência. Mais tarde, nas Constituições que reconheceram a proteção jurídica de alguns desses direitos, o direito natural de resistência transformou-se no direito positivo de promover uma ação judicial contra os próprios órgãos do Estado.

Assim, toda sorte de violação dos direitos humanos num Estado que os assume constitucionalmente é de sua responsabilidade, e seus órgãos e agentes responderão por isso. Esta necessária preocupação é fundamental para que, por meio da democracia, se garanta a cidadania à todos. Se isto não ocorrer o comprometido de direitos estende-se sobre o valor maior, a democracia. Esta nova interface é assim compreendida por SINGER (2009, p. 15)

A conquista dos Direitos Humanos é parte essencial de uma conquista maior, a da democracia, não só como regime político, mas como modo de convivência social. A base da democracia, nesta acepção, é o reconhecimento da igualdade de todos os seres humanos que formam uma dada sociedade.

Desta forma, enquanto todos os cidadãos de um determinado Estado, não tenham asseverada a igualdade de direitos e oportunidades, não se pode falar em Democracia ou Estado Democrático de Direito. Ao contrário, a limitação ao acesso à direitos e oportunidades é um sinal de deterioração da democracia e da aproximação à um Estado bárbaro.  Hannah Arendt (apud LAFER, 1997),  expressa o significado de cidadania da seguintes forma:

 A cidadania é o direito a ter direitos, pois a igualdade em dignidade e direito dos seres humanos não é um dado. É um construído da convivência coletiva, que requer o acesso a um espaço público comum. [...] é esse acesso ao espaço público [...] que permite a construção de um mundo comum através do processo de asserção dos direitos humanos.

Mais que partilhar direitos, partilha-se o mundo e por isso é um direito dos mais frágeis, que os mais fortes assumam a responsabilidade de ajuda-los mais veementemente a cuidar do que nos é comum. Há que ser um cuidado que efetivamente comprometa, não apenas paute debates isolados. Neste sentido o PAPA FRANCISCO (2015, p. 37) doutrina

Gostaria de assinalar que muitas vezes falta uma consciência clara dos problemas que afetam particularmente os excluídos. Estes são a maioria do planeta, milhares de milhões de pessoas. Hoje são mencionados nos debates políticos e econó­micos internacionais, mas com frequência parece que os seus problemas se coloquem como um apêndice, como uma questão que se acrescenta quase por obrigação ou perifericamente, quan­do não são considerados meros danos colaterais.

Essas palavras pontuam algo que até então permanecia oculto ou sutilmente posto à margem, especialmente quando os governos representam interesses que não seriam aprovados pelas classes menos privilegiadas econômica e socialmente. Mesmo diante da uniformidade estabelecida pelos chamados direitos fundamentais declarados em caráter universal é sempre providencial lembrar que para cada Estado, há uma diversidade de formas e interpretações destes direitos. A este respeito é providencial recorrer à BENEVIDES, 2012, p. 4 quando este afirma que

Cidadania e direitos da cidadania dizem respeito a uma determinada ordem jurídico-política de um país, de um Estado, no qual uma Constituição define e garante quem é cidadão, que direitos e deveres ele terá em função de uma série de variáveis tais como idade, o estado civil, a condição de sanidade física e mental, o fato de estar ou não em dívida com a justiça penal etc. Os direitos do cidadão e a própria ideia de cidadania não são universais no sentido de que eles estão fixos a uma específica e determinada ordem jurídico-política. Daí, identificarmos cidadãos brasileiros, cidadãos norte-americanos e cidadãos argentinos, e sabemos que variam os direitos e deveres dos cidadãos de um país para outro.

Portanto, a universalização dos direitos não rompe com a lógica da autonomia e da identidade dos Estados, garantindo o respeito às peculiaridades históricas, políticas e ideológicas da cada um. Mas certamente foi o caráter universal que os fez conhecidos e presentes nos debates nos mais diferentes recantos do planeta. BOBBIO (1998, p. 28), a este respeito, destaca que

Somente depois da Declaração Universal é que podemos ter a certeza histórica de que a humanidade – toda a humanidade – partilha alguns valores comuns; e podemos, finalmente, crer na universalidade dos valores, no único sentido em que tal crença é historicamente legítima, ou seja, no sentido em que universal significa não algo dado objetivamente, mas algo subjetivamente acolhido pelo universo dos homens.

Portanto, o caráter universal está intimamente ligado ao conceito de ambiente (casa) comum em que vivemos. Respeitadas as peculiaridades de cada Estado, é fundamental que nenhum ser humano se perceba desprotegido deste verdadeiro “guarda-chuva” universal. Portanto, havendo quem se sinta fragilizado em qualquer aspecto, é necessário que haja intervenção para que seus direitos sejam reestabelecidos.

Oferecer igualdade, considerando o desigual que há em cada ser humano é uma importante lição que Rui Barbosa na condição de paraninfo dos formandos da turma de 1920 da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco preferiu na conhecida  Oração aos Moços  que contem a seguinte afirmativa  [...] a regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real.  

Portanto ao estabelecer políticas públicas ou ações de natureza coletiva é fundamental que se conheçam as identidades dos atores envolvidos, suas peculiaridades. As políticas públicas encontram maior acolhimento, e por isso resultados mais evidentes se cada sujeito for efetivamente atingido de acordo com sua forma de existir.

Ainda na reflexão acerca da relação entre tratamento e forma de ser entre iguais e diferentes SANTOS (2009, p. 15, 18) assevera que “temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza”. Assim um direito, para ser humano e respeitar tal condição não pode impor ou fortalecer elementos hierárquicos, tampouco descaracterizar os que atinge. Ao contrário, existe exatamente para romper com hierarquias e tentativas de anular identidades.

Durante a Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, realizada em Viena, no ano de 1993 elaborou-se uma Declaração e Programa de Ação que entre outras afirmações estabelecer que  [...] a pobreza extrema e a exclusão social constituem uma violação da dignidade humana e que são necessárias medidas urgentes para alcançar um melhor conhecimento sobre a pobreza extrema e as suas causas, incluindo as relacionadas com o problema do desenvolvimento, por forma a implementar os Direitos do homem dos mais pobres, a colocar um fim à pobreza extrema e à exclusão social e a promover o gozo dos frutos do progresso social.

É possível afirmar sem embargo, que a violação da dignidade humana é pois uma forma flagrante de descarte de seres humanos do seu grupo de origem. Dito de outra forma, um ser (substantivo) humano sem dignidade deixa de ser (verbo) humano. Esta flagrante desumanização atinge um patamar de proporções que extrapolam o simples debate legal e assume um caráter ético, revestido de compromissos emergenciais.

Assim PIOVESAN (2006, p. 13) enfatiza que  “No momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que cruelmente se abole o valor da pessoa humana, torna-se necessário a reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético de restaurar a lógica do razoável”.

A razoabilidade a que se refere a autora é aquela em que se supõe que para um ser humano existir, não seja necessário que outro(s) existam menos ou simplesmente não existam. Por este princípio é fundamental que se respeito o direito de cada um existir conforme sua possibilidade e seu desejo de existir.

Por uma desigualdade necessária

Partindo do princípio de que não há dois seres humanos iguais, dentre bilhões existentes a consolidação dos direitos humanos que permitem, entre outras coisas, combater à pobreza, é fundamental que se preserve a desigualdade que diferencia cada um dos habitantes deste planeta. O que pode ser considerado um direito essencial e extensivo à todos os seres humanos é a preservação da sua dignidade.

Entretanto, está entre as prerrogativas fundantes da dignidade o respeito à diferença, e portanto, transigir este direito é tão grave quanto ignorar a miserabilidade a que muitos são e foram historicamente condenados. Assim o estabelecimento de políticas públicas de combate a pobreza, há que considerar a forma que cada um deseja ver-se livre dela, segundo sua tradição, sua historicidade, seus sonhos e suas utopias.

A desigualdade, pautada no respeito às diferenças e identidades é um sinal claro de que eventuais políticas públicas de combate à pobreza e à miséria, iniciam-se pelo conhecimento e reconhecimento de fatores históricos que lançam expressiva parte da população às condições mais subumanas conhecidas. Pregar a desigualdade, não significa estabelecer rankings, mas respeito e reconhecimento que cada sujeito tem o direito de existir, como deseja.

 

Referencias bibliográficas

 

 

BENEVIDES, Maria Victoria. Cidadania e Direitos Humanos. São Paulo: Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo, 2012.

 

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1998

 

CHIMENTI, Ricardo Cunha; CAPEZ, Fernando; ROSA, Márcio Elias. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.

 

DECLARAÇÃO E PROGRAMA DE AÇÃO DE VIENA. In: Conferência Mundial sobre Direitos Humanos. 1993. Portal de Direito Internacional. Disponível em: . Acesso em: 5 mar. 2015.

 

LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: a contribuição de Hannah Arendt. Estudos Avançados, v. 11, n. 30, São Paulo, maio/ago. 1997. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=s0103-40141997000200005&script=sci_arttext. Acesso em:  16.jul.2016.

 

PAPA FRANCISCO. Carta encíclica  laudato si: sobre o cuidado da casa comum. Tipografia Vaticana. 2015.

 

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

 

RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

 

SANTOS, Boaventura de Sousa. Direitos Humanos: o desafio da interculturalidade. Revista Direitos Humanos, Brasília, v. 2, p. 10-18, jun. 2009. Disponível em: . Acesso em: 5 mar. 2015.

 

SINGER, Paul.  Impactos da crise econômica mundial sobre o exercício dos direitos humanos. Revista Direitos Humanos. n. 04, Dez/200.

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