30/09/2019

Ecos de Intertextualidade e Semiótica em O Nome Da Rosa

Simao_mago_descanso

RESUMO

Umberto Eco, semioticista e medievalista notório, autor de O Nome da Rosa (1980), imprime de modo indelével em seu romance histórico, gótico, político e outras tantas possibilidades interpretativas; uma ostensiva intertextualidade e recursos semióticos. O gênio do autor urde habilmente na tessitura do texto uma profusão de citações, referencias e índices que permitem ao leitor mais culto ou “leitor semiótico”, de acordo com Eco, fazer escolhas interpretativas e decidir, por exemplo, se a discussão em torno da pobreza de Jesus, ou seja, se Jesus possuía ou não as próprias vestes, constituir-se-ia em uma discussão válida ou não à época contemporânea ao texto ou até mesmo na atualidade, sem parecer alegórico. O próprio título do livro nos remete a uma escolha: Se os nomes que damos às coisas seriam mais importantes que as coisas em si. Afinal, de acordo com Eco, quando tudo acabar restará somente a lembrança do nome da rosa.

Palavras-chave: Semioticista. medievalista. leitor semiótico, intertextualidade.

ABSTRACT

Umberto Eco, a notorious semiotician and medievalist, author of The Name of the Rose (1980), indelibly impresses on his historical, gothic, political novel and many other interpretive possibilities; an ostensible intertextuality and semiotic resources. The genius of the author skillfully urges a profusion of quotations, references and indexes that allow the most educated reader or “semiotic reader”, according to Eco, to make interpretative choices and decide, for example, whether the discussion around Jesus' poverty, that is, whether or not Jesus had his own clothes, would constitute a valid discussion or not valid at the time contemporary to the text or even today, without seeming allegorical. The very title of the book leads us to a choice: Whether the names we give to things would be more important than the things themselves. After all, according to Eco, when it is all over there will be only the memory of the name of the rose.

Keywords: Semiotician. Medievalist.semiotic reader, intertextuality.

INTRODUÇÃO

O título do livro/romance O Nome da Rosa, publicado no Brasil em 1986,em edição traduzida do original em italiano (1980) por Aurora Fornoni Bernadini e Homero Freitas de Andrade, devido ao variado número de significados pode despistar o leitor ao fazer as mais variadas escolhas. Estaria"O nome da Rosa" correlacionado ao signo triádico (icônico, indicial e simbólico) de Charles Sanders Peirce entremeado à narrativa ficcional do romance policial propositadamente a instigar a lógica e o raciocínio, elementos fundamentais para a criação deste tipo de narrativa? A rosa é uma figura simbólica tão densa de significados, que quase não tem mais nenhum: Rosa mística, a guerra das duas rosas, rosa morena, os rosa-cruzes. O próprio autor afirma que “um título deve antes confundir um leitor, não discipliná-lo” (Eco, 1997, p. 07).

O Nome da Rosa é uma narrativa inserida em múltiplas molduras. Utilizando a estratégia do manuscrito encontrado, multiplica os pontos de vista que a estória é contada.E o resultado é um sofisticado jogo meta textual e intertextual que mistura fatos históricos e citações realmente existentes com detalhes totalmente inventados, de forma que até o leitor mais experimentado pode perder-se nas tramas da narrativa.

A intertextualidade é a espinha dorsal na narrativa de O Nome da Rosa,a qual é construída com uma técnica de montagem lingüística que o próprio Eco compara à de um artista medieval, em que peças são montadas para formar o santo e preciso relicário.

A intertextualidade representa a metáfora da existência humana, construída a partir de diferentes experiências e de teorias incertas, que cada teoria leva a outra teoria, casa signo leva a outro signo e ao tentar aproximar-se da verdade absoluta representada pelo livro tão fatal; o segundo livro da Poética de Aristóteles que trata da comédia e do riso que ao final da historia Guilherme percebe que o livro que procurava era o livro que ensinava a rir dos outros livros, a ironia final e que “as únicas verdades que nos servem são instrumentos descartáveis” (ECO, 2012, p. 220). A biblioteca-mundo de Eco, labiríntica, imponente e complexa, porém efêmera, que pode ser incendiada e destruída, tal qual a vida humana. Constituindo-se e uma das variadas chaves interpretativas da narrativa.

O enredo centra-se na Idade Média, em torno da resolução de uma série de assassinatos, colocando-nos uma dúvida sobre uma pretensa obra de Aristóteles. O final é apocalíptico, com a destruição total do mosteiro por um incêndio. Constitui-se também a uma denúncia de falsos problemas da racionalidade, que ameaçava a existência divina. Partindo-se da premissa que a razão melhor iluminava a compreensão do divino, defendeu-se que o racionalismo também era caminho para comprovação da existência de Deus.

Os fatos narrados em O Nome da Rosa passaram-se em 1327, num mosteiro beneditino, ao longo de sete dias e sete noites, divididos ordinalmente conforme a concepção de tempo nos mosteiros Medievais. Idealisticamente localizado em algum lugar ao norte da Itália, o mosteiro passa a ser palco de uma discussão se Jesus possuía ou não as próprias roupas. Os franciscanos defendiam a completa pobreza de Jesus, justificando a sua visão desinteressada de bens materiais. As demais ordens religiosas defendiam o direito da igreja a possuir bens na terra. Um debate religioso que tendia para um confronto político.

Os franciscanos eram regulados pela Santa Inquisição, o tribunal da igreja que era baseado em obras como o manual dos inquisidores ou O Martelo Das Feiticeiras, Malleus Maleficarum é o título original em latim, publicado em 1486. É um perverso e cruelmanual de ódio tortura e morte. A partir dele, pessoas foram torturadas, perseguidas e mortas acusadas de bruxaria, pactos com o diabo e heresias, levando milharesà fogueira na Europa.

Assassinatos misteriosos começam a se multiplicar e passam a ser o eixo temático do livro. Um fato comum parecia ligar os homicídios.Os mortos eram encontradoscom a língua e as pontas dos dedos manchados de tinta. As investigações, conduzidas de forma racional eram constantemente questionadas pelo inquisidor, na tentativa de correlacionar os assassinatos a “obras do diabo”. No trecho citado a seguir Guilherme de Baskerville defende seu ponto de vista racional:

“Voltemos aos processos. Vede: um homem, suponhamos, foi morto por envenenamento. Este é um dado da experiência. É possível que imagine, diante de certos sinais irrefutáveis, que o autor do envenenamento foi outro homem. Em cadeias de causas tão simples, a minha mente pode intervir com uma certa confiança no seu poder. Mas como posso complicar a cadeia imaginando que, a causar a ação malvada, haja uma outra intervenção, desta vez não humana mas diabólica? Não digo que não seja possível, também o diabo denuncia a sua passagem com claros sinais, como o vosso cavalo Brunello. Mas porque devo procurar essas provas? Não é já suficiente que eu saiba que o culpado é aquele homem e o entregue ao braço secular? Em qualquer caso, a sua pena será a morte, que Deus lhe perdoe.” (ECO, Umberto, 1996 Pg.21).

Bernardo Guy, o inquisidor dominicano, não esconde sua pré-disposição em condenar Guilherme de Baskerville que enfrentou o perigo da própria condenação demonstrando que as mortes decorriam da leitura do livro proibido de Aristóteles, cujas páginas estaria envenenadas eno qual o grego pregava que ao homem não seria proibido rir. Uma heresia teológica, segundo o costume.

Adso envolveu-se sexualmente com uma moça do vilarejo, que vivia em miséria absoluta e vendia-se aos monges em troca de comida. Na cena final da narrativa o dilema de Adso seria seguir o seu mestre ou permanecer onde viviam os familiares da moça. Adso seguiu com seu mestre, relatando anos depois na velhice os fatos como sucederam. A biblioteca foi incendiada, destruindo quase todos os livros, restando apenas alguns poucos salvos por Guilherme.Uma metáfora, talvez, de como ocorre em nossa vida. Os livros que conhecemos não são necessariamente os melhores e que ao longo de nossa vida e da formação de nossa cultura sofremos uma serie de interferências, as quais jamais saberemos perfeitamente entender e explicar.

FUNDAMENTAÇÃO

A teoria semiótica fundada por Charles S. Pierce (1839-1914) e desenvolvida por Eco indica que as representações linguísticas são signos. Em decorrência da leitura do texto, os interpretantes são produzidos na mente dos leitores, configurando imagens ou ícones que, no contexto narrativo, são apresentados como índices, signos indicativos ou símbolos, decorrentes de informações convencionais. Os conceitos e as relações teóricas propostas neste artigo tomam escritos de Peirce (2005) e Eco (1997) como referência,que tratam da tricotomia da relação dos signos com seus objetos dinâmicos, classificando-os conforme o tipo de ligação que estabelecem – similaridade, contiguidade, convencionalidade – em: ícone, índice e símbolo respectivamente.

Dentro da narrativa desenvolvem-se estas relações entre ícones, índices e símbolos nas quais se constrói o personagem – protagonista, frei Guilherme que acompanha os signos das cenas conforme descritas pelo autor, ilustrando a forma pela qual sua interpretação dos ícones  e de índices ocorre. Ícones de significação atuam nas ideias gerais e compõe o signo (significação) além de atuarem nas associações por similaridade feitas pelo protagonista; já os índices permitem conectar a narrativa com o mundo existencial, o mundo real.

As descrições riquíssimas em detalhes das cenas e diálogos situam o leitor, principalmente como o autor-narrador percebe o raciocínio lógico do frei-protagonista na interpretação dos sinais do ambiente em que estão relacionando-os a cultura temporal vigente.

A percepção imagética do caminho que leva à abadia, logo no início da narrativa é uma indicação clara do processo semiótico, que numa ação continuada, criando uma sequencia lógica de diversos interpretantes, como a presença de fileiras simétricas de árvores evocam na mente do frei um pensamento de ordem, beleza por respeitarem o ordenamento clássico de beleza e ordem; que por sua vez demonstra esmero e vontade de impressionar os visitantes da abadia. Para uma segunda impressão seriam consideradas as expensas necessárias para causar tal impressão, ou seja: recursos financeiros e esforço humano, demonstrando conhecimento do protagonista dos padrões de comportamento social. Assim seria possível concluir que a abadia é rica e o Abade gosta de impressionar, através das relações simbólicas do que foi visto e os padrões estabelecidos.

“Enquanto os nossos machos trepavam pela última curva da montanha, lá onde o caminho principal se ramificava em trívio, gerando dois carreiros laterais, o meu mestre parou por algum tempo, olhando em torno os lados da estrada, a estrada, e acima da estrada, onde uma série de pinheiros sempre-verdes formava por um breve espaço um teto natural, alvo de neve. - Rica abadia - disse. - O Abade gosta de parecer bem nas ocasiões públicas.” (Umberto Eco, 1996 Pg. 14)

Os indícios ou marcas de algo são descritos por PIERCE (2005) como signos “indiciais” ou índices e sua função principal é estabelecer uma relação de continuidade com seus objetos, “capazes de remeter ao todo” (relação metonímica). O frei demonstra como o raciocínio possibilita a compreensão do que se passa longe dos seus olhos e, ainda, permite-lhe prever as razões anteriores, nem sempre explícitas, que o justificaram. Os símbolos são importantes, mas não mais do que os ícones e índices.

Toda a estrutura narrativa de O Nome da Rosa envolve diversos gêneros literários: policial, gótico, histórico e fantástico. Essa multiplicidade de gêneros leva o leitor a uma multiplicidade interpretativa. O jogo de montagem que envolve toda a estrutura do texto permite ao leitor encontrar dentro do evidente gênero policial traços góticos com atmosferas medievais tenebrosas, com monges assassinos e uma pitada do sobrenatural ou demoníaco, ou até mesmo do histórico, através da fartamente documentada cultura medieval, da vida dos monges beneditinos e das disputas entre os franciscanos e o Papa.

Adso, que se apresenta como autor-narrador, diz ter encontrado um livro que continha as memórias de um monge alemão chamado Adso de Melk, Trata-se de uma tradução para o francês de uma transcrição em latim, obra do monge beneditino Mabillon, que o próprio autor transcreveu para o francês e desafortunadamente desapareceu junto com seu companheiro de viagem, conforme se lê no trecho abaixo:

“Antes de chegar a Salisburgo, numa trágica noite, num pequeno albergue, ás margens do Mondsee, meu sodalício de viagem interrompeu-se bruscamente e a pessoa com quem viajava desapareceu levando consigo o livro do abade Vallet”. (Umberto Eco, 1996 p.9).

O Nome da Rosa é texto polissêmico, “uma máquina para gerar interpretações” (ECO, 2012, p. 578), que se utiliza de metáforas e citações, gerando uma série de índices para sua compreensão mais profunda. Seus enunciados remetem a outros discursos, tornando legível sua interpretação.  Essa hibridização de gêneros textuais, bem definidos no imaginário coletivo, permite uma ampla abordagem de intertextos e citações. O detetive, o labirinto, a misteriosa biblioteca, isso tudo nos remete a uma atmosfera de familiaridade. Jorge de Burgos, o guardião cego da biblioteca, é uma referencia explícita ao escritor argentino Jorge Luis Borges, além nas inumeráveis semelhanças ao conto A Biblioteca de Babelde Borges, além da recorrência à temática borgeana de labirintos e espelhos, comum nas duas obras. Eco acredita na riqueza da “memória semântica” e de sua inesgotável fonte de significados referência? A leitura intertextual pressupõe encontrar os índices de enunciação, correlacionar semelhanças e diferenças, perceber as metáforas intertextuais, um processo complexo que passa a exigir uma investigação de seu diálogo com outros textos, pois para Eco “os livros falam entre si”.

William de Baskerville, o personagem principal, é uma referencia clara ao livro de Sir Artur Conan Doyle, Os Cães de Baskerville (1902) que deu início as aventuras do detetive Sherlock Holmes e também a semelhança entre o auxiliar do detetive William: Adso e o auxiliar do detetive Sherlock: Watson. “Elementar meu caro Watson”.

A intertextualidade evidente no livro de Eco coloca o detetive William, que ao longo da narrativa passa a se chamar Guilherme, como um produto de um complexo procedimento intertextual que pode nos levar a traçar conexões com o nominalista Gulherme de Occam. Guilherme de Baskerville, o personagem, conhece textos em árabe e aprecia bibliotecas antigas e medievais, expressa conhecimento sobre as opiniões de Lutero sobre os italianos, sabe a regra de Tremaux para sair de labirintos e duvida que exista ordem no universo. Enfim, perspectivas contemporâneas à Idade Média, que não condizem com a era Medieval. Guilherme também propõe uma interpretação do sermão aos pássaros de São Francisco de Assis. No sétimo dia, ao discutir com Jorge de Burgos ele se serve das idéias de Baktin. A complexidade do personagem, as diversas citações extremamente sofisticadas somente poderão ser compreendidas pelo “leitor semântico” que segundo Eco, aprende a ler como a história foi narrada, compreendendo assim melhor sua rede de significação (ECO 2003, p.208), ou seja: o leitor preparado pela qualidade de leituras anteriores ao passo que o leitor “semântico” não passaria do primeiro nível de leitura, o do deslumbramento pelas qualidades do personagem Guilherme empenhado em solucionar os misteriosos assassinatos.

Destaca-se também a ironia intertextual que perpassa toda a narrativa e funciona como uma advertência ao leitor, levando-o a questionar-se a real ocorrência dos fatos ou a forma como estes foram narrados, poderia se considerar oque se lê nos livros como factual? Como ao citar o Evangelho de João: “No principio era o Verbo e o Verbo estava junto a Deus, e o Verbo era Deus”, pois uma narrativa é sempre passível de várias interpretações, considerando-se o Evangelho de João como um texto canônico, dogmático o qual se pretende verdadeiro e fiel, divergindo assim do romance ficcional.

O autor, Umberto Eco, se dedica aos estudos de Semiótica.Então é justo pressupor que há um consciente enfoque semiótico em sua obra literária. Através do protagonista, Eco evidencia as suas próprias qualidades como semioticistae escritor. Assim, demonstra mais do que capacidade para ler o mundo, pois também sabe falar muito bem sobre como o mundo pode ser lido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A intencional recorrência da intertextualidade que perpassa O Nome da Rosa reafirma o postulado de Eco que diz que “um livro conversa com outros livros” (Umberto Eco, 1997, Pg. 27)constitui indícios suficientes para fazermos uma leitura de que o autor, sendo especialista na cultura medieval, em literatura e semiótica, queira demonstrar seu conhecimento como literato medievalista, semioticista e douto romancista. A riqueza de detalhes na descrição da cultura medieval exemplificada na vida dos frades, nas discussões teológicas e a ambientação do romance reafirmam Eco como renomado medievalista. A aplicação exata de recursos semióticos conforme exemplificado anteriormente afirma o autor como semioticista e, por fim, a rica profusão de recursos intertextuais posiciona o autor como romancista especialista, capaz de provocar o leitor a ler seu romance “semioticamente” ao passo que pode também ser lido semanticamente. Isso podemos inferir ao analisarmos o trecho citado anteriormente em que Eco descreve o caminho que leva ao mosteiro, fazendo uso de recursos semióticos na descrição da simetria e ordem exemplificados nas fileiras de pinheiros que ladeiam o caminho que conduzem ao mosteiro, indicando o esmero e o empenho de recursos humanos e financeiros para causar boa impressão ao público externo à abadia e aos seus visitantes, demonstra também de maneira inequívoca ao leitor mais experimentado a expertise do autor.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ECO, Umberto. Tratado Geral de Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1997.

GHIzzi, EluizaBortolotto; Machado,Amanda Pires; Sousa, Richard Perassi Luiz de. Ícones, índices e símbolos em um trecho de O nome da Rosa.

Revista Literatura em Debate, v. 6, n. 11, p. 80-98, dez. 2012. Recebido em: 31 out. 2012. Aceito em: 27 nov. 2012.

Tradutores: Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade

Semeiosis: semiótica e transdisciplinaridade em revista. [suporte eletrônico] Disponível em: <www.semioses.com.br/o-nome-da-rosa/>. Acesso em 23/04/2019

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