EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA NA ESCOLA: DESCOLONIZANDO SABERES E CONSTRUINDO NOVOS PARADIGMAS.
Por - Ivan Carlos Zampin: Professor Doutor, Pesquisador, Pedagogo, Graduado em Educação Especial, Docente no Ensino Superior e na Educação Básica, Gestor Escolar e Especialista em Gestão Pública.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/2342324641763252
1. Introdução: A Hegemonia Eurocêntrica e a Negligência Histórica
A instituição escolar, enquanto principal agência de transmissão e produção de conhecimento nas sociedades modernas, consolidou-se sobre alicerces profundamente marcados pela colonialidade e por uma visão de mundo eurocêntrica. Durante séculos, os currículos e as práticas pedagógicas foram pautados por um cânone intelectual que chancelou e naturalizou saberes específicos, oriundos majoritariamente da Europa, em detrimento de uma miríade de conhecimentos, cosmovisões e epistemologias desenvolvidas por outras culturas, raças e etnias. Este processo não foi neutro; foi, antes, um projeto de poder que estabeleceu uma hierarquia global do conhecimento, onde os saberes não-europeus foram sistematicamente inferiorizados, silenciados ou simplesmente apagados.
Essa base hegemônica, longe de ser um acidente histórico, serviu para reforçar relações de dominação e subalternidade. A negação da existência e do valor dos conhecimentos africanos, indígenas, afro-brasileiros e quilombolas não foi uma mera omissão, mas uma ação ativa que legitimou a exploração e o racismo. A escola, ao reproduzir incansavelmente essa lógica, tornou-se um dos pilares de manutenção das desigualdades raciais. A educação antirracista surge, portanto, não como um tema transversal ou um apêndice curricular, mas como uma necessidade epistemológica e política urgente, que visa desestabilizar essas estruturas consolidadas e abrir espaço para uma verdadeira ecologia de saberes.
2. A Emergência de Outras Ciências: Intelectuais Negras e Negros na Vanguarda do Pensamento
Para desconstruir a narrativa única, é fundamental conhecer e valorizar a trajetória de intelectuais, pesquisadoras e pesquisadores negros que, ao longo da história, construíram saberes a partir de suas próprias experiências e realidades. Figuras como Lélia Gonzalez, Abdias Nascimento, Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento, Milton Santos, entre tantas outras, demonstraram que existem, sim, outras Ciências e epistemologias concebidas a partir da diversidade étnico-racial.
Estes pensadores e pensadoras não se limitaram a "responder" ao cânone eurocêntrico; eles produziram teorias originais e frameworks analíticos potentes para compreender a sociedade brasileira e as diásporas africanas. Conceitos como "Amefricanidade" (Lélia Gonzalez), "Quilombismo" (Abdias Nascimento), "Epistemicídio" (Boa Ventura de Sousa Santos, em diálogo com essas pautas) e "Racismo Estrutural" (Sueli Carneiro) são exemplos de ferramentas teóricas que emergem de um contexto de luta e resistência. Eles produziram saberes culturais, sociológicos, filosóficos e científicos diversos, que durante séculos foram silenciados por não se adequarem ao projeto colonial de dominação. Reconhecê-los é mais do que um ato de justiça histórica; é uma condição para a descolonização intelectual.
3. A Ciência como Produto da Diversidade: Descolonizando os Saberes
A Ciência, com "C" maiúsculo, frequentemente é apresentada como um empreendimento universal, neutro e objetivo. Contudo, a perspectiva decolonial nos alerta que a própria noção de ciência hegemônica foi forjada em um contexto específico, então, “o iluminismo europeu”, assim, carrega em seu bojo as marcas do colonialismo. A descolonização dos saberes implica, portanto, em questionar esse lugar de privilégio e entender a produção de conhecimento como um campo plural, marcado pela diversidade étnico-racial.
Esta nova postura epistemológica possibilita novos olhares e questionamentos fundamentais: Qual o lugar da população negra, dos povos indígenas e das comunidades quilombolas na produção do conhecimento científico? Como suas contribuições em áreas como a medicina, a botânica, a astronomia, a filosofia e a organização social foram apropriadas ou apagadas? A ciência pautada na diversidade não busca substituir um dogma por outro, mas ampliar o repertório da humanidade, reconhecendo a validade de diferentes sistemas de conhecimento. Esta é uma dimensão fundamental para a inclusão social, pois permite que sujeitos históricos e epistemicamente silenciados se vejam como produtores, e não apenas como objetos, do saber.
4. A Decolonialidade: Para Além da Crítica, um Processo de Desconstrução
O termo "decolonialidade" refere-se a um processo contínuo e profundo de crítica e desconstrução das estruturas de poder, saber e ser que foram criadas e perpetuadas pelos contextos de colonização. Diferente de uma simples crítica ao colonialismo histórico que se focaria nos eventos do passado, assim, a decolonialidade aborda as formas sutis e arraigadas como a lógica colonial continua a moldar as práticas políticas, econômicas, sociais, culturais e educacionais nas sociedades contemporâneas, mesmo após o fim formal dos impérios coloniais.
Trata-se de um esforço intelectual e prático para desmontar a "matriz colonial de poder", que hierarquiza as pessoas, seus saberes e suas formas de vida. Na escola, isso se traduz em questionar desde a escolha dos autores lidos em literatura até os métodos de ensino em história, das teorias científicas ensinadas como verdades absolutas até a estética valorizada nas atividades artísticas. A decolonialidade nos convida a interrogar: Quem define o que é conhecimento válido? Quem é considerado sujeito do conhecimento? Quais corpos e vozes são considerados dignos de serem ouvidos e estudados?
5. Aprendizados e Avanços: Teorias Emergentes e a (Re)Invenção do Racismo
O aprendizado sobre Ciências, epistemologias e culturas afro-brasileiras, africanas e quilombolas, quando pautado no diálogo e na valorização dessas diversidades, representa um avanço crucial na compreensão do mundo social. Essas "teorias emergentes" que, na verdade, são antigas, mas foram sistematicamente sufocadas, produzem sentidos novos e desestabilizadores sobre o conhecimento.
Elas revelam, por exemplo, como a chamada "racionalidade científica" hegemônica não foi um mero instrumento de progresso, mas também uma ferramenta responsável por reforçar desigualdades sociais em diferentes dimensões. A ciência foi historicamente mobilizada para criar teorias raciais pseudocientíficas, legitimar a eugenia e patologizar corpos e culturas não-brancas. Compreender esse papel da ciência na promoção do racismo é um passo essencial para desnaturalizá-lo. As teorias decoloniais e antirracistas nos permitem enxergar como o racismo na sociedade brasileira não é um resquício arcaico, mas um fenômeno dinâmico, que se (re)inventa e se adapta, encontrando novas roupagens em discursos aparentemente neutros.
6. O Combate ao Racismo na Escola: Para Além das Ações Pontuais
A compreensão do racismo como um sistema estrutural demanda um esforço pedagógico que vá muito além de iniciativas imediatistas, pontuais e desprovidas de objetivos claros, como atividades restritas ao mês de novembro. A educação antirracista requer um compromisso institucional profundo e contínuo, que envolva a formação crítica de docentes, a revisão dos projetos político-pedagógicos e a transformação da cultura escolar.
As ações de aprendizagem efetivas devem ter como ponto de partida a problematização da Ciência e do próprio conhecimento escolar, expondo suas vinculações com a colonialidade e o racismo. Isso significa, na prática, ensinar sobre as contribuições científicas e filosóficas das civilizações africanas; incluir autores negros e indígenas como parte central do currículo de literatura, história e sociologia; debater o conceito de racismo ambiental; e analisar criticamente como os livros didáticos tratam (ou deixam de tratar) a história da África e da diáspora. É um trabalho de desaprendizagem de estereótipos e de reconstrução de narrativas.
7. Considerações Finais: A Escola como Espaço de Transformação
Em razão de sua importância na formação de subjetividades e visões de mundo, a escola não pode se furtar ao seu papel transformador. As teorias emergentes, pautadas nas diversidades Afro-brasileira, Africana e Quilombola, oferecem as lentes necessárias para entendermos científica e teoricamente o panorama histórico e social do Brasil. Elas iluminam os problemas emanados de uma formação social colonial e escravocrata e explicitam o modo como certas teorias acadêmicas, ao longo do tempo, construíram, reforçaram ou naturalizaram o racismo.
A educação antirracista e decolonial é, portanto, um projeto de emancipação. Ao descolonizar os saberes, a escola pode se tornar um espaço de celebração da diversidade humana, de cura de feridas históricas e de construção de um futuro verdadeiramente democrático, onde a pluralidade de conhecimentos e experiências seja não apenas tolerada, mas reconhecida como a base mais sólida para uma sociedade justa e equânime. A tarefa é complexa e desafiadora, mas é uma condição indispensável para a refundação de uma escola que sirva a todos e todas, em sua plena e rica humanidade.
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