Educar para a morte, é possível?
Tenho por hábito a leitura do Clipping Educacional, da CONSAE. No dia 17/02/16, me deparei com um artigo que chamou minha atenção: “sobre o ensino do assunto “morte” na escola e a morte da minha mãe”, de Sabine Righetti.
A autora perdera, recentemente, a mãe e ao que parece, não estava preparada para lidar com a situação. A primeira questão que me veio foi: é possível se sentir preparada? Ao que parece, nunca nos sentiremos prontos para encarar um fato que é a única certeza da vida, desde o primeiro sopro: a morte.
Nunca nos sentiremos preparados para a morte dos outros e a maior parte de nós, nem mesmo para a própria morte, embora haja a certeza que esta pode tardar, mas não falha.
Concordo com todos os pressupostos da preparação indicadas pela autora, mas não tenho certeza se o espaço escolar é o lócus ideal para o desenvolvimento das habilidades citadas, quando relacionados à morte. Parece-me que este papel seja da família; dos pais.
Dá à criança/adolescente a ideia de finitude da vida, porque este é o processo natural, não precisa ser dramático ou traumático. Vai depender, em parte, da percepção dos pais, da crença ou descrença religiosa daquele que “ensina”.
Entendo ser possível ensinar às crianças, observando-se a ordem natural e que estas sejam capazes de compreender, desde que a ordem natural se mantenha. Mas é sempre mais doloroso ensinar aos pais, quando esta ordem se inverte, pois para a perda de um filho não existe preparação possível, de modo que os sentimentos presentes serão aqueles descritos pela autora: frustração, impotência, raiva, tristeza. Só muito tempo depois é que a resiliência ou a conformação os visitam.
Mesmo sem ter nenhuma doença que nos leve a pensar nisso, podemos realizar algumas ações práticas, que facilitem a vida de quem terá que providenciar os últimos momentos da presença corpórea, mesmo diante da dor que provavelmente se instalará.
A primeira delas é a escolha de onde será sua morada terrena definitiva, ou como de modo “lúdico” costumava falar: onde estará escondido os ossinhos do vovô. Não custa expressar com naturalidade, como deseja que seja este momento, este último dia em que os amigos seus e dos familiares e até alguns curiosos, irão se “despedir” da sua presença material entre eles. Entre algumas amigas, esse não é um assunto tabu. Até damos risadas da “última vontade”, algumas assumem o compromisso de, se presentes, cumpri-la, outros se recusam, terminantemente, a participar.
É importante saber com quem nossos familiares poderão contar nessa hora que, a despeito de toda preparação, de toda convicção religiosa, de toda a fortaleza que se julgue ser, a dor será a primeira a se manifestar, a saudade, o lamento pela ausência que o outro trará para nossa vida.
Particularmente, aprendi com minha mãe sobre a consciência da ausência, mesmo antes de sua partida. Falecida a exatos 4 anos, aos 81 anos, alguns anos antes se ausentou. Com consciência do que lhe sucederia, aproveitou seu tempo de lucidez para registrar para o futuro o seu amor incondicional e isto nos preparou para a separação dolorosa, ainda que este possa não ter sido o seu intento.
Não há como defenestrar a morte, ela é correlata da vida, então o que se deve fazer é falar sobre a vida, sobre o que se planeja fazer, o que se gostaria de fazer se assim nos for permitido e, aos poucos, se aliar à conversa expressões como: “se eu não estiver aqui”, “lembre-se que”, “conte aos meus netos”...
Não faça drama, não proponha o medo. É preciso fazer compreender que essa é a realidade, mencionada ou não. E assim, penso possível se ir preparando o outro e a si, mas rogando a Deus que seja permitido bem viver todas as etapas, rogando que somente saia de cena quando o miúdo (meu filho) tenha compreensão, pela convicção religiosa que professo, que é uma passagem e o único caminho de ser conduzida à vida eterna.
O preparo é necessário para que a sensação de frustração, de impotência, de medo não seja preponderante, para que haja espaço para a saudade, não para a dor constante.
Gosto muito de Rubem Alves. No livro Retratos de Amor, página 14, ao falar sobre divórcio e morte, afirma que:
“Na verdade a dor da partida é maior que a dor da morte. Pois o morto se foi contra a vontade. Partiu me amando. Partiu triste por me deixar.”
Infere que o primeiro dói menos, porque ali, temos a certeza que o outro nos deixou sem querer deixar. Na segunda, se pode cogitar de abandono, pois o outro não desejou a morte. Depois daí, menciona que:
“Nenhuma alegria o espera. Por isso os pensamentos de quem ficou descansam tranquilos, sem serem perturbados por fantasias dos novos amores e prazeres à espera do que morreu. Pois nada o aguarda.”
Como cristã, mais me alegra o Salmo 16:9
“Alegra-te, pois o meu coração, e o meu espírito exulta; até o meu corpo repousará seguro”
Há, aí, consolo para aqueles que ficam, e eu creio.
Na mitologia[1] grega, também, encontramos referências à fatalidade da morte. O tempo se apresenta como forças incontroláveis a que mesmo os deuses devem a elas se curvarem. Às moiras cabem tecer e registrar o destino, que se mostra como “um tapete ou manta”, em que cada evento, cada fio se cruza e possui uma razão para ocorrer e a sua consequência. As moiras são também as responsáveis por romper o fio da vida, enviando no tempo certo, o indivíduo para o reino de Hades. Ao Hades, se é conduzido por Tânatos, deus grego da morte não violenta, irmão gêmeo de Hipnos, o deus do sono. Ou por Queres, que personifica espíritos de abate e doença[2]. Dentre as moiras, Irene é aquela que personifica a paz. Ao invés de se opor à ordem natural dos eventos, os compreende e não resiste. Este o nosso papel educacional relativo à morte: fazer compreender e não resistir, porque o fio da vida será cortado de cada um, em tempo que talvez seja determinado, sobre o qual não temos nenhum conhecimento.
Voltando ao texto bíblico, vimos que Jesus, também, foi “preparado” para a morte, para a própria morte, quando sobe ao Tabot e é esclarecido por Elias e Moisés, enquanto os seus discípulos, no afã de negar o que vem pela frente, dormem. Não querem? Não precisam escutar sobre aquele relato? Mas o fato, a morte de Jesus também era certa desde o seu nascimento.
A morte de qualquer pessoa querida vai exigir de nós, um período de luto, que não deve ser negado. É preciso sentir, expressar o sentir para que se possa seguir. Não se pode ficar mortificada diante da perda, uma vez que já era certeza desde o primeiro suspiro.
Concluindo, devemos ser preparados para a separação; para a morte, do modo mais natural possível, aproveitando momentos de intimidade familiar para reflexionar.
Permaneço com a dúvida se este tema deva ser abordado como conteúdo escolar. Puxar a conversa no conforto e presença dos familiares me parece ser o mais adequado.
Era madrugada quando acordei pensando naquele texto. E eu, como lido com o tema na minha casa, com um único filho, tendo já falecido pai e mãe? Sinto que fui preparada carinhosamente pela minha mãe. Ela nos foi preparando para sua saída de cena, para sua presença ausente, pois fora acometida do Mal de Alzheimer. Escreveu para mim em diferentes livros, lições que gostaria que eu aprendesse. Escreveu para o neto, porque sabia que quando ele tivesse compreensão de quem ela era, ela não mais saberia quem era ele. Então expressou todo o seu amor, lhe deixou os conselhos e registros que pôde.
Adoto o procedimento usado pela minha mãe: escrevo ao meu filho, aos meus netos para o futuro, para ser reminiscência de uma mãe amiga, de uma avó imaginada muito amorosa.
Sabine Righetti, espero que a resiliência tenha lhe alcançado.
Autora: Hermilia Feitosa Junqueira Ayres
[1] A palavra mito vem do latim mÿthos ou mÿthus e do grego muthos, e significa “relato fantástico de tradição oral, protagonizado por seres que encarnam as forças da natureza e os aspectos gerais da condição humana [...]” (HOUAISS; VILLAR; FRANCO, 2009, p. 1300).
[2]Ao Hades se é conduzido por Tânatos, deus grego da morte não violenta, irmão gêmeo de Hipnos, o deus do sono. Ou por Queres que personifica espíritos de abate e doença.