Entre direitos e deveres, a solidariedade: uma justiça metafísica
O momento é único. Discursos de notáveis autoridades já apontaram que a pandemia provocada pelo covid-19 é o maior desafio, desde a Segunda Guerra Mundial.
No Brasil, talvez, não se via algo tão devastador, desde o início do século XX, quando a gripe espanhola aniquilou, ao menos, 35 mil pessoas[1].
A historiadora Christiane Maria Cruz de Souza, do Núcleo de Tecnologia em Saúde do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia, em entrevista[2], afirmou que “A liturgia das grandes epidemias é sempre muito parecida. Primeiro, as autoridades negam que ela existe, uma vez que é algo desconhecido e com potencial de abalar a economia e os sistemas de saúde. Muitos dos discursos das autoridades no início da pandemia de 1918 se assemelham ao que vemos hoje”.
Lavoisier nunca foi tão atual: “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Em outras e adaptadas palavras, a história é cíclica.
E o que o Direito tem a ver com isso?
Ultimamente, tenho observado um diário e intenso movimento de grandes juristas – e aventureiros, como eu – em escrever artigos, promover lives e interações virtuais, dentre outras ferramentas, que suscitam conhecimento e patrocinam grandes debates, fazendo jazer, ainda que momentaneamente, o discurso de Umberto Eco, para quem a internet “promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade[3]”.
Entre direitos e deveres, contratos, obrigações, perdas, danos etc., muitas soluções são pontuadas. A expertise de renomados civilistas, com suas notórias e incontestáveis especializações, aponta a simples previsões do direito obrigacional e contratual.
Desde a aplicação do artigo 234, CC - “Se, no caso do artigo antecedente, a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradição, ou pendente a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas as partes [...]” – até o rebus sic standibus, especialistas conduzem ao credo de que o ordenamento jurídico brasileiro está apto ao cenário atual.
As leituras, cuja proficiência não contesto, ao contrário, são de nobilíssima grandeza, faz-me lembrar o crítico social H. L. Mencken e o festejado jurista Miguel Reale. O primeiro afirmou, certa feita, que “Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada”; Reale, por sua vez, foi o mentor da Teoria Tridimensional do Direito, segundo a qual, em modesto entendimento, a norma surge a partir da valorização de um fato social.
E qual a similitude entre a memória de Mencken e Reale?
O ordenamento jurídico brasileiro não tem norma que tutele este novel e complexo fato social hodiernamente vivenciado. Qualquer solução que se proponha, dentro do cenário normativo vigente, trará uma solução simples, elegante e errada.
A teoria da imprevisão – rebus sic standibus –, ao meu sentir, teria escorreita aplicabilidade, se não fosse pelo requisito da “extrema vantagem” da outra parte, condição que visa manter o equilíbrio das relações, inclusive, no desfazimento do contrato. Em extrema vantagem, por enquanto e lamentavelmente, somente o vírus.
Nas relações de consumo, melhor sorte não assiste aos contratantes. Muitos artigos positivados no campo das relações obrigacionais eximem das perdas e danos o devedor que age sem culpa, ou em virtude de caso fortuito ou força maior. Entretanto, a responsabilidade prevalente do CDC é a objetiva, de modo que o elemento volitivo, no inadimplemento contratual, não é pressuposto de análise.
Todavia, muito antes de estabelecer direitos aos consumidores e deveres aos fornecedores, o Compêndio Consumerista estabeleceu princípios norteadores às relações de consumo, dentre os quais, a harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo, compatibilizando a proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios constitucionais nos quais se funda a ordem econômica, “sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores” (art. 4º, III, CDC).
Em outras palavras, não se pode desprezar que, neste momento, a vulnerabilidade pressuposta não é atributo exclusivo do consumidor.
E, por aí, uma infinidade de contratos faz com que a balança da justiça penda descontrolada e vulnerável ao novo fato social, escancarando nossa mais frágil humanidade. Merkel[4], em acalorado discurso, consignou nos anais da história que “Isto é o que uma epidemia nos mostra: quão vulneráveis nós todos somos, quão dependentes nós somos do comportamento dos mais vulneráveis [...]”.
Assim, entre direitos e deveres, a solidariedade será o vetor axiológico do ordenamento jurídico, da Economia, da Política e de todos os outros matizes em tempos de covid-19, já que “nós podemos proteger e fortalecer uns aos outros, agindo juntos. Isto depende de todos[5]”.
[1] Disponível em https://saude.abril.com.br/blog/tunel-do-tempo/semelhancas-covid-pandemias-passado/. Acesso em 29, MAR 2020.
[2] Idem, ibidem
[3] Disponível em https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/ansa/2015/06/11/redes-sociais-deram-voz-a-legiao-de-imbecis-diz-umberto-eco.jhtm. Acesso em 29, MAR 2020.
[4]Disponível em https://www.brasil247.com/mundo/o-discurso-historico-de-angela-merkel-contra-o-coronavirus. Acesso em 29, MAR 2020.
[5] Idem, ibidem.