Filosofia, Ética e Cidadania: Uma Tríade Indissociável para o Século XXI
Ivan Carlos Zampin;
Resumo
Este artigo analisa a relação intrínseca entre Filosofia, Ética e Cidadania, demonstrando como esta tríade constitui o alicerce fundamental para uma sociedade democrática substantiva. Partindo dos princípios fundamentais da investigação filosófica, percorremos seu desenvolvimento histórico até as contribuições decisivas da filosofia contemporânea, destacando como as reflexões éticas evoluíram para fundamentar a noção moderna de Direitos Humanos. A metodologia baseia-se na análise conceitual e na reconstrução histórica do pensamento filosófico, articulando três eixos principais: a fundamentação filosófica da distinção entre ética e moral; as contribuições decisivas da filosofia contemporânea para compreensão do sujeito ético e da sociedade; e a articulação prática desses saberes com o exercício pleno da cidadania ativa. Conclui-se que a reflexão filosófica contínua é condição necessária para enfrentar os complexos desafios éticos da atualidade, fortalecendo tanto a autonomia do cidadão quanto a coesão social em contextos de pluralismo radical.
Palavras chave: Filosofia Política. Ética Pública. Cidadania Ativa. Direitos Humanos. Democracia Substantiva.
1. Introdução
Em um cenário global marcado por aceleradas transformações tecnológicas, crises políticas multidimensionais e profundas desigualdades sociais, os conceitos de ética e cidadania são frequentemente invocados retoricamente, mas raramente compreendidos em sua profundidade filosófica e interdependência estrutural. Este artigo sustenta a tese de que a Filosofia, longe de constituir um campo meramente especulativo, fornece as ferramentas intelectuais indispensáveis para fundamentar racionalmente a ética, que por sua vez serve como alicerce normativo para o exercício de uma cidadania consciente, crítica e ativa. Como observa Cortina (2005, p. 23), "em tempos de crise de sentidos, a filosofia recupera sua vocação originária de interrogar radicalmente sobre os fundamentos da convivência humana".
O problema central que orienta esta investigação é: de que modo a tradição filosófica, particularmente os desenvolvimentos da filosofia contemporânea, contribui para a construção de uma ética pública capaz de sustentar os Direitos Humanos e uma cidadania substantiva em sociedades complexas? Para enfrentar esta questão, o texto estrutura-se em seções que exploram sistematicamente os Princípios da Filosofia, o desenvolvimento histórico do pensamento ético, as contribuições transformadoras da Filosofia Contemporânea e sua concretização institucional no âmbito da Cidadania e Direitos Humanos.
A relevância desta investigação torna-se particularmente urgente diante do que Santos (2007, p. 45) denomina "déficit teórico da cidadania contemporânea", onde "o exercício dos direitos formais não se converte necessariamente em participação substantiva na construção do bem comum". Vivemos uma paradoxal simultaneidade, ou seja, nunca houve tanta informação disponível, e nunca pareceu tão difícil estabelecer critérios éticos compartilhados para orientar a ação coletiva. Neste contexto, a filosofia oferece os instrumentos para navegar na complexidade, distinguindo o fundamental do acessório, o verdadeiro do aparente, o justo do injusto.
A metodologia adotada combina a análise conceitual rigorosa com a consideração dos desafios históricos concretos que caracterizam o século XXI. Partimos do pressuposto, seguindo Habermas (2012, p.78), de que "as questões normativas exigem respostas fundamentadas, não meramente opiniões ou preferências subjetivas". Assim, busca-se demonstrar como o pensamento filosófico, desde suas origens gregas até as contribuições contemporâneas, fornece esse fundamento racional para uma ética pública capaz de enfrentar desafios como a inteligência artificial, as mudanças climáticas, os fluxos migratórios e as novas formas de exclusão social.
A estrutura argumentativa desenvolve-se em quatro movimentos interrelacionados: primeiro, examina os princípios fundantes da atitude filosófica; segundo, analisa a distinção entre ética e moral e seu desenvolvimento histórico; terceiro, explora as contribuições da filosofia contemporânea para repensar a fundamentação da ética; e quarto, investiga as mediações institucionais que permitem concretizar esses princípios éticos através dos direitos humanos e de uma cidadania participativa. Esta abordagem sequencial permite compreender a filosofia não como conhecimento estanque, mas como tradição viva que dialoga permanentemente com os desafios de seu tempo.
2. Referenciais Teóricos
O arcabouço teórico deste artigo sustenta-se em um diálogo crítico entre tradições clássicas e correntes contemporâneas, estabelecendo uma trajetória histórica que demonstra a evolução do pensamento ético e político. Dos filósofos antigos, recorremos a Sócrates, Platão e Aristóteles para estabelecer os fundamentos da ética como investigação racional sobre a vida boa e a virtude (areté). Como afirma Reale (2022, p. 89), "a filosofia grega clássica legou à posteridade não um sistema dogmático, mas um método de questionamento permanente sobre os fins da existência humana". Da modernidade, Immanuel Kant constitui referência central com sua ética deontológica baseada no dever e na autonomia da vontade, enquanto John Stuart Mill representa a tradição utilitarista consequencialista, focada na maximização do bem-estar coletivo.
No domínio da Filosofia Contemporânea, as contribuições revelam-se particularmente relevantes para os desafios atuais. Pensadores da Escola de Frankfurt, como Theodor Adorno e Max Horkheimer, auxiliam na compreensão dos paradoxos da razão iluminista e dos processos de reificação que transformam relações humanas em relações entre coisas. Como observam Adorno e Horkheimer (2021, p.45), "a razão instrumental, ao se absolutizar, converte-se em sua própria antítese, gerando novas formas de barbárie". Jürgen Habermas, com sua teoria da ação comunicativa, oferece um modelo robusto para uma ética discursiva e deliberativa, fundamentando a democracia na força do melhor argumento e não na mera vontade majoritária.
A filosofia de Emmanuel Levinas, que instaura a responsabilidade para com o "Outro" como fundamento pré-originário da ética, e as reflexões de Hannah Arendt sobre a banalidade do mal e a esfera pública, são igualmente fundamentais para discutir Cidadania e Direitos Humanos em sua complexidade contemporânea. Para Levinas (2019, p. 78), "a ética não é um momento da filosofia, mas a filosofia primeira, pois a relação com o Outro precede toda ontologia". Arendt (2020), por sua vez, nos alerta que "o maior perigo para a democracia não está nos grandes criminosos, mas na incapacidade de pensar criticamente que caracteriza o homem massa".
Complementam este quadro teórico as contribuições de Michel Foucault sobre as relações entre poder, saber e subjetividade; de Paul Ricoeur sobre a identidade narrativa e a ética da solicitude; e de Boaventura de Sousa Santos sobre a ecologia de saberes e a reinvenção emancipatória da cidadania. Esta diversidade teórica não representa ecletismo, mas antes o reconhecimento de que a complexidade dos desafios éticos contemporâneos exige uma abordagem multidimensional e intercultural. Como afirma Santos (2018, p. 112), "nenhuma tradição teórica possui o monopólio da verdade, mas todas podem contribuir para a construção de uma sociedade mais justa".
3. Desenvolvimento
3.1. Dos Princípios da Filosofia aos Fundamentos da Ética e Moral
A jornada filosófica inicia-se com a capacidade radical de questionar, característica fundamental da condição humana. Os Princípios da Filosofia residem na admiração (thaumazein), no diálogo racional (dialética) e na busca rigorosa pela verdade (aletheia). Sócrates afirmou: “uma vida não examinada não vale a pena ser vivida” (PLATÃO, Apologia de Sócrates, 38a). Este exame crítico não constituía um exercício narcísico, mas uma investigação profunda sobre os conceitos fundamentais que orientam a ação humana: o que é o bem, a justiça, a coragem? Como nos lembra Marcondes (2023, p. 45), "a atitude filosófica nasce precisamente desse espanto diante do mundo e da recusa em aceitar explicações não fundamentadas".
Platão desenvolve a noção do Bem como princípio supremo, e Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, trouxe a ética ao terreno da práxis concreta, definindo a virtude como “uma disposição de caráter relacionada com a escolha e consistente num meio-termo relativo a nós, determinado pela razão” (ARISTÓTELES, 2009, II, 1106b36). Para o Estagirita, o fim (telos) da vida humana é a eudaimonia, o florescimento humano, que se realiza necessariamente na vida virtuosa dentro da comunidade política (pólis). Como observa Cortina (2015, p. 78), "a ética aristotélica mantém surpreendente atualidade, precisamente por sua ênfase no caráter e na realização humana integral, contra visões reducionistas do bem viver".
A distinção conceitual entre Ética e Moral é essencial para compreender os diferentes níveis de reflexão sobre a ação humana. A moral refere-se ao conjunto historicamente situado de normas e costumes que regulam o comportamento em determinada sociedade. A ética, por outro lado, constitui a reflexão filosófica de segundo nível sobre a própria moral, investigando sua validade e fundamentos universais. Enquanto a moral responde “o que devo fazer?”, a ética pergunta “por que devo fazer isso?” e “que tipo de vida quero conduzir?”. Como destaca Vaz (2022, p. 112), "a moral representa o ethos concreto de um povo, enquanto a ética representa sua problematização racional e universalizante".
Esta distinção torna-se especialmente relevante nas sociedades multiculturais contemporâneas, onde diferentes sistemas morais coexistem e, por vezes, entram em conflito. A ética surge então como instância mediadora capaz de estabelecer diálogos interculturais baseados em princípios universalizáveis, sem desrespeitar as particularidades de cada tradição moral. Neste sentido, a filosofia cumpre uma função civilizatória essencial, proporcionando as ferramentas conceituais para negociar conflitos de valores de forma racional e pacífica, fundamentando assim uma cidadania democrática que respeita a diversidade sem abdicar de critérios de justiça compartilhados.
3.2. A Virada da Filosofia Contemporânea e suas Implicações Éticas
A Filosofia Contemporânea, ao romper com os paradigmas metafísicos clássicos, não apenas revisitou a ética, mas redefiniu radicalmente o lugar do sujeito e da ação moral em contextos históricos concretos. Como observa Marilena Chaui (2000, p. 247), “a filosofia moderna e contemporânea desloca a ética do campo da natureza para o campo da liberdade”, reconhecendo a responsabilidade humana como construção histórica e social. Este deslocamento fundamental representa uma transformação epistemológica que substitui a busca por fundamentos transcendentais pela análise das condições materiais e históricas que tornam possível o agir moral.
Michel Foucault (1984), em sua análise das “tecnologias do eu”, mostra como a ética se constitui em práticas de liberdade um modo de relação consigo e com os outros. “A ética é a prática refletida da liberdade” (FOUCAULT, 1984, p. 50). Essa ideia antecipa o ideal contemporâneo de uma cidadania ativa e consciente, onde a autonomia não é simplesmente dada, mas construída através de práticas cotidianas de resistência e auto constituição. Como complementa Veiga-Neto (2000, p. 89), "a contribuição foucaultiana nos permite compreender a cidadania não como status, mas como exercício permanente de liberdade responsável frente aos mecanismos de poder".
Paul Ricoeur (1990) também propõe uma “ética da solicitude”, que articula a estima de si, o respeito ao outro e a justiça como mediação institucional. Para ele, “a ética visa a vida boa, com e para os outros, em instituições justas” (RICOEUR, 1990, p. 202). Tal formulação sintetiza a interdependência entre os níveis individual, intersubjetivo e político da moralidade, superando tanto o individualismo liberal quanto o coletivismo autoritário. Esta perspectiva é particularmente relevante para compreender os desafios das sociedades pluriculturais, onde a justiça exige o reconhecimento da alteridade em sua dignidade específica.
A “razão comunicativa” de Habermas (1989) traduz essa virada paradigmática: “a validade das normas morais depende de um consenso racional alcançado em condições ideais de fala” (HABERMAS, 1989, p. 134). Assim, a ética torna-se um procedimento discursivo, em que a cidadania emerge como prática de deliberação e corresponsabilidade. Esta abordagem oferece bases sólidas para uma democracia deliberativa onde as normas que regem a vida coletiva resultam do debate público inclusivo e da força do melhor argumento. Como observa Costa (2008, p. 156), "a ética discursiva habermasiana representa um marco na fundamentação da democracia participativa, ao vincular legitimidade à inclusão de todos os afetados nas deliberações públicas".
A convergência desses pensadores contemporâneos aponta para uma compreensão da cidadania como exercício contínuo de autonomia responsável, mediado por instituições democráticas e pelo reconhecimento da alteridade. Esta visão supera a concepção liberal minimalista da cidadania como mero portador de direitos, propondo em seu lugar uma cidadania ativa, participativa e fundamentada em práticas éticas de cuidado de si e do outro. Neste sentido, a filosofia contemporânea fornece os alicerces para repensar a educação cidadã como formação para o diálogo, a crítica e a corresponsabilidade social.
3.3. A Concretização: Cidadania e Direitos Humanos
A relação entre ética e cidadania torna-se mais evidente nas sociedades globalizadas, onde questões locais e globais se interconectam de forma inexorável. Boaventura de Sousa Santos (2002) adverte que “sem uma reinvenção ética e participativa da cidadania, a democracia corre o risco de converter-se em mera gestão técnica do poder”. Esta visão alerta para o perigo da despolitização da vida pública, onde decisões fundamentais para o coletivo são tomadas como se fossem questões meramente administrativas, esvaziando o espaço público de seu caráter deliberativo e participativo.
Martha Nussbaum (2011, p. 32) reforça que “a educação filosófica é essencial à democracia porque forma cidadãos que sabem pensar por si mesmos, raciocinar sobre o bem comum e reconhecer a humanidade nos outros”. Esta perspectiva encontra eco em Enrique Dussel (2000, p. 45), que propõe uma ética da libertação, em que “o rosto do pobre me interpela eticamente antes de qualquer sistema moral”. Dussel nos convida a uma virada epistemológica radical colocando os excluídos no centro da reflexão ética e política, transformando sua interpelação concreta no ponto de partida para uma cidadania verdadeiramente inclusiva.
Adela Cortina (2005, p. 77) destaca que “a cidadania não é um status, mas uma tarefa”, uma prática que requer engajamento ético permanente. Esta concepção dinâmica da cidadania como construção cotidiana ressoa com Saviani (2008, p. 67), para quem “educar é formar o homem histórico, capaz de compreender e transformar o mundo”. A educação, sob esta ótica, não pode se limitar à transmissão de conhecimentos técnicos, mas deve forjar sujeitos históricos conscientes de seu poder e responsabilidade na transformação social.
Os Direitos Humanos representam a materialização jurídico-política de princípios éticos construídos ao longo da história. A noção de dignidade humana inviolável, pilar da Declaração Universal de 1948, herda o imperativo categórico de Kant: “Age de tal modo que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (KANT, 2007, p. 66-67). Este princípio fundante estabelece as bases para uma cidadania que transcende fronteiras nacionais, apontando para uma ética cosmopolita onde a dignidade de cada ser humano precede qualquer condição particular.
A filosofia, ao ser introduzida como disciplina formativa, cumpre uma função civilizatória, desenvolvendo a autonomia moral e a capacidade de julgamento virtudes indispensáveis à democracia. Como argumenta Hannah Arendt (2016), a capacidade de pensar criticamente constitui a primeira linha de defesa contra a banalidade do mal e a erosão dos espaços públicos de liberdade. Neste sentido, a prática filosófica na educação prepara os cidadãos não apenas para compreender o mundo, mas para nela atuar de forma reflexiva e responsável, resistindo aos discursos hegemônicos e às simplificações perigosas.
A concretização da cidadania no século XXI exige, portanto, o reconhecimento da interdependência global e do caráter multicultural das sociedades contemporâneas. Como observa Cortina (2017), “estamos diante do desafio de construir uma cidadania cosmopolita capaz de articular lealdades locais com responsabilidades globais, em um mundo onde problemas como as mudanças climáticas, as pandemias e as crises migratórias exigem respostas coletivas e coordenadas”. Neste contexto, os Direitos Humanos surgem como linguagem comum e horizonte normativo para esta cidadania expandida.
4. Conclusão
O percurso desenvolvido evidencia que Filosofia, Ética e Cidadania formam uma estrutura dinâmica e indissolúvel que se reforça mutuamente. A filosofia, como fundamento primeiro, proporciona as ferramentas críticas necessárias para desconstruir preconceitos, questionar dogmas e examinar as estruturas de poder que organizam nossa convivência social. Ela nos ensina a duvidar metodologicamente, a argumentar com rigor lógico e a buscar a verdade através do diálogo respeitoso entre diferentes perspectivas. Sem este exercício constante de reflexão, a vida em sociedade corre o risco de se tornar mera reprodução acrítica de hábitos e convenções, esvaziando-se de significado autêntico e de potencial transformador.
A ética, por sua vez, emerge naturalmente deste terreno filosófico fertilizado pela crítica, constituindo-se como o conjunto de princípios e valores que orientam nossa ação concreta no mundo. Ela representa a tradução prática da reflexão filosófica em diretrizes para o comportamento individual e coletivo, questionando não apenas "o que podemos fazer" tecnologicamente, mas "o que devemos fazer" moralmente. Numa era de desafios globais complexos, ou seja, das mudanças climáticas às desigualdades estruturais, das transformações digitais, às crises migratórias, a ética fornece o farol normativo que nos permite navegar entre escolhas difíceis, lembrando-nos que o desenvolvimento técnico deve estar sempre subordinado ao desenvolvimento humano integral.
A cidadania, como terceiro vértice deste triângulo virtuoso, materializa no espaço público essas reflexões filosóficas e compromissos éticos, convertendo-os em práticas políticas concretas e em instituições sociais duradouras. Ela transcende em muito o mero cumprimento de deveres formais ou o exercício ocasional de direitos eleitorais, configurando-se como um engajamento contínuo na construção do bem comum. O verdadeiro cidadão não é apenas aquele que vota a cada dois ou quatro anos, mas aquele que se mantém permanentemente vigilante ante os abusos de poder, que participa ativamente dos debates públicos, que se solidariza com os excluídos e que trabalha cotidianamente para ampliar os círculos de inclusão e reconhecimento em sua comunidade.
Contudo, observa-se que a sociedade contemporânea, marcada pela lógica do desempenho e do consumo, tende a dissolver os vínculos comunitários e a enfraquecer a ética da responsabilidade. O individualismo exacerbado e a busca por resultados imediatos ameaçam substituir a figura do cidadão solidário e reflexivo por um sujeito autocentrado, competitivo e alienado de seu papel social. Nesse contexto, a filosofia surge como uma prática de resistência, capaz de despertar a consciência crítica e promover o cuidado de si e do outro. Ela nos oferece os antídotos conceituais necessários para enfrentar a tirania do presente perpetuo, a cultura do descartável e a fragmentação das experiências coletivas que caracterizam nosso tempo.
A tríade discutida neste trabalho deve ser compreendida como horizonte normativo para a humanidade no século XXI. O fortalecimento da cidadania democrática depende do cultivo de uma ética pública, que, por sua vez, exige o pensamento filosófico como condição permanente de renovação e transformação. Sem a reflexão crítica, a cidadania reduz-se a mera formalidade, e a ética perde sua força orientadora, tornando-se conjunto vazio de regras desprovidas de fundamentação racional e de apelo convincente para as novas gerações.
Pensar eticamente e filosoficamente é, portanto, o primeiro ato de cidadania. É por meio da educação que se formam cidadãos capazes de exercer a liberdade com responsabilidade, de reconhecer a diversidade como valor e de atuar coletivamente na construção de um futuro mais justo. A educação filosófica, ética e cidadã é, assim, o instrumento mais poderoso para forjar democraticamente um amanhã mais livre, solidário e digno para todos. Esta educação não pode ser compreendida como luxo intelectual reservado a elites, mas como necessidade vital para qualquer sociedade que pretenda enfrentar seus desafios com criatividade, justiça e sabedoria coletiva.
Num mundo de complexidade crescente, onde problemas técnicos se entrelaçam inextricavelmente com dilemas morais, a separação entre filosofia, ética e cidadania revela-se artificial e contraproducente. O desafio que se coloca para nossas instituições educativas, para nossas lideranças políticas e para cada um de nós como membros responsáveis da comunidade humana é precisamente o de religar estes três domínios, cultivando simultaneamente a capacidade de pensar com rigor, de agir com princípios e de participar com compromisso na vida pública. Só assim poderemos aspirar a uma democracia que seja não apenas formalmente correta, mas substantivamente uma democracia de cidadãos, não de meros consumidores ou espectadores passivos do espetáculo político.
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