Gestão Democrática para a Diversidade: Caminhos para uma Escola Antirracista e Inclusiva.
Ivan Carlos Zampin;
Elza Maria Simões;
Mery Elbe Simões Ramalho;
Dulcinéia Alves Fernandes Fogari;
Maria Neuma Simões da Silva;
Márcia dos Santos.
Resumo
Este artigo tem como objetivo analisar a interseção entre a gestão democrática e a promoção da diversidade étnico-racial no ambiente escolar, com foco na construção de um espaço educacional efetivamente antirracista e inclusivo. Partindo de uma análise do legado colonial e dos desafios estruturais da educação brasileira, o estudo discute o papel estratégico da gestão escolar na implementação das Leis nº 10.639/03 e nº 11.645/08. A metodologia baseia-se em revisão bibliográfica e análise documental, explorando as bases legais que sustentam a gestão democrática e as políticas de promoção da igualdade racial. O artigo argumenta que a efetivação de uma educação antirracista está intrinsecamente ligada a práticas de gestão que priorizam a participação coletiva, a transversalidade curricular e o uso estratégico de mecanismos de financiamento como o FUNDEB, PDDE e PAR. Finda-se então, em dizer que a gestão democrática, quando orientada para a diversidade, é um instrumento fundamental para a desconstrução de desigualdades históricas e a garantia de direitos educacionais para todos.
Palavras-chave: Gestão Democrática; Educação Antirracista; Diversidade; Projeto Político-Pedagógico; Leis 10.639/03 e 11.645/08.
1. Introdução
A escola, enquanto instituição social, é um espelho das estruturas que compõem a sociedade. No contexto brasileiro, marcado por um legado colonial escravocrata, a educação historicamente reproduziu silenciamentos, marginalizações e desigualdades que atingem, sobretudo, a população negra, indígena e outros grupos minorizados. A superação deste quadro exige mais do que intervenções pontuais, ou seja, demanda uma transformação profunda na cultura e na estrutura de gestão das unidades de ensino.
Neste artigo, é proposta uma reflexão sobre a Gestão Democrática como eixo central para a consolidação de uma escola para a diversidade. A Partida se dá buscando como pressuposto de que a simples existência de marcos legais, como as Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, não é suficiente para garantir a efetiva implementação de uma educação das relações étnico-raciais. A fragilidade da gestão democrática na maioria das escolas brasileiras constitui-se como um obstáculo estrutural, mantendo as ações antirracistas na periferia do projeto educativo, frequentemente restritas a iniciativas individuais de docentes ou a datas comemorativas.
O grande objetivo aqui é, portanto, analisar como os princípios da gestão democrática previstos na Constituição Federal de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN nº 9.394/96), podem e devem ser mobilizados para operacionalizar um compromisso institucional com a diversidade. Para isso, percorre-se um caminho que parte do referencial teórico sobre gestão democrática, avança para a discussão das legislações específicas, explora estratégias práticas de implementação e, por fim, reflete sobre os desafios e perspectivas que se apresentam.
2. Referencial Teórico
2.1. A Gestão Democrática como Princípio Constitucional
A gestão democrática é um princípio constitucional (Art. 206, VI, CF/88) e um pilar da educação nacional, detalhado no Artigo 14 da LDBEN nº 9.394/96. Segundo esse dispositivo, a gestão democrática é assegurada mediante a participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola e a participação das comunidades escolares locais, em conselhos escolares ou equivalentes. Para Veiga (2009), a gestão democrática pressupõe a ruptura com modelos verticais e autoritários de administração, substituindo-os por uma lógica de corresponsabilidade e partilha de poder. Não se trata apenas de uma técnica administrativa, mas de uma prática política que visa a emancipação dos sujeitos. Nesse sentido, a construção coletiva do Projeto Político-Pedagógico (PPP) deixa de ser uma mera formalidade e transforma-se no "norte" da instituição, expressando sua intencionalidade e seu compromisso com a transformação social.
Macedo (2017) acrescenta que a escola é um campo de relações de poder. A organização do tempo, do espaço, do currículo e da dinâmica escolar é, em si mesma, uma manifestação de poder. Qualquer proposta de mudança, portanto, deve necessariamente impactar essas relações. Uma gestão que se pretenda democrática e antirracista deve, então, questionar e reorganizar essas estruturas de poder, descentralizando decisões e criando canais efetivos de participação para estudantes, famílias, funcionários e representantes da comunidade local, especialmente os ligados a movimentos sociais negros e indígenas.
3. Desenvolvimento dos Conteúdos: A Interseção entre Gestão e Diversidade
3.1. O Lugar Estratégico da Gestão na Implementação das Leis 10.639/03 e 11.645/08
A promulgação das Leis 10.639/03 e 11.645/08 representou um marco na luta por uma educação antirracista no Brasil, tornando obrigatório o ensino da História e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena. No entanto, sua implementação esbarra na desconexão entre a vontade política de alguns atores (muitas vezes, professores isolados) e a gestão institucional. Como aponta Rodrigues (2014), os desafios para a gestão na educação das relações étnico-raciais são múltiplos: desde a falta de formação específica até a resistência de setores da comunidade escolar. Sem o engajamento ativo do núcleo gestor (direção, coordenação pedagógica), as ações tendem a ser:
- Pontuais: Restritas ao mês de novembro (Consciência Negra) ou a datas específicas.
- Fragmentadas: Dependentes da iniciativa individual de professores, sem integração curricular.
- Descontínuas: Sem garantia de permanência ao longo dos anos, mudando conforme a rotatividade de docentes.
A gestão democrática surge, então, como antídoto a essa fragmentação. Cabe à gestão:
- Institucionalizar a pauta: Inserir a educação das relações étnico-raciais como um eixo transversal no PPP, no regimento escolar e no plano de ação anual.
- Garantir condições materiais e formativas: Viabilizar a aquisição de materiais didáticos específicos, promover formação continuada para todos os profissionais e criar espaços de discussão sobre racismo e diversidade.
- Fomentar a participação da comunidade: Estabelecer parcerias com lideranças comunitárias, mestres de cultura popular e movimentos sociais, garantindo que suas vozes e saberes componham o projeto educativo.
3.2. Mecanismos de Financiamento como Ferramentas para a Ação
A gestão democrática também se opera na esfera financeira. Recursos como o FUNDEB, o Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) e o Plano de Ações Articuladas (PAR) são instrumentos potenciais para financiar ações antirracistas. Cabe à gestão, de forma transparente e participativa, direcionar esses recursos para:
- PDDE Diversidade: Destinar verba do PDDE para a compra de livros de autores negros e indígenas, brinquedos e jogos que representem a diversidade, e para a realização de eventos culturais.
- PAR com Enfoque Étnico-Racial: Incluir, no planejamento enviado ao MEC via PAR, metas e ações específicas para a implementação das leis 10.639/03 e 11.645/08, como a reforma da biblioteca para criar um acervo específico ou a contratação de consultorias para formação de professores.
- Prestação de Contas Participativa: Socializar as informações sobre a aplicação dos recursos com a comunidade escolar, fortalecendo o controle social e a corresponsabilidade.
3.3. O Projeto Político-Pedagógico (PPP) como Contrato Antirracista
O PPP é o coração da gestão democrática. Conforme afirma Veiga (2009, p. 164), "o projeto político-pedagógico aponta um rumo, uma direção, um sentido específico para um compromisso estabelecido coletivamente". Um PPP comprometido com a diversidade deve, portanto, ser construído a partir de uma escuta ativa dos anseios e necessidades da comunidade, em especial daqueles grupos historicamente silenciados.
Isso implica em:
- Diagnóstico Participativo: Realizar um diagnóstico da realidade escolar que identifique manifestações de racismo, discriminação e a representatividade (ou falta dela) da cultura negra e indígena no currículo e no ambiente físico.
- Objetivos Claros: Estabelecer, de forma clara, objetivos e metas para o enfrentamento do racismo e a promoção da igualdade racial.
- Ações Transversais: Assegurar que as ações previstas não fiquem restritas a uma disciplina ou área, mas permeiem todo o currículo, a formação de professores, a avaliação e a relação com as famílias.
4. Análise e Discussão: Avanços, Obstáculos e Perspectivas
A análise da legislação, como feito por Militão e Militão (2019), revela avanços significativos na consolidação da gestão democrática como princípio legal. No entanto, os autores também destacam os problemas na materialização desse princípio, como a fragilidade dos conselhos escolares e a persistência de culturas organizacionais centralizadoras.
Quando se sobrepõe a luta antirracista a esse cenário, os desafios se ampliam. A perspectiva que se coloca é a de que a gestão democrática e a educação para as relações étnico-raciais são lutas indissociáveis. Ambas buscam a redistribuição de poder, o reconhecimento das diferenças e a superação de desigualdades históricas.
Um obstáculo central é o que se pode chamar de "gestão do silêncio", uma administração que, mesmo não sendo explicitamente racista, falha em criar mecanismos para que o racismo seja discutido e combatido. A simples não proibição não é o mesmo que a promoção ativa. A perspectiva de superação reside justamente na radicalização da democracia. Isso significa:
- Formar para a Gestão: Incluir, nos cursos de formação de gestores, o tema da diversidade e das relações étnico-raciais como componente central.
- Fortalecer os Coletivos: Apoiar a criação de grêmios estudantis, comissões de pais e mestres e outros coletivos que possam pressionar por mudanças.
- Utilizar as Diretrizes Curriculares: As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para a Educação Escolar Quilombola são ferramentas poderosas que devem ser utilizadas pela gestão para embasar e orientar as ações pedagógicas, indo além do aspecto legal e assumindo um caráter pedagógico e transformador.
5. Conclusão
A construção de uma escola antirracista e verdadeiramente inclusiva transcende a esfera pedagógica para se consolidar como um projeto civilizatório. Este empreendimento exige muito mais do que boas intenções ou ações pontuais, demanda a implementação de uma arquitetura institucional sólida e intencional, alicerçada de forma inequívoca na gestão democrática. Como demonstrado ao longo desta análise, a plena efetivação das Leis 10.639/03 e 11.645/08 está intrinsecamente vinculada a um modelo de gestão que não apenas tolera, mas ativamente compartilha poder, que ouve a comunidade em sua pluralidade e que assume a diversidade étnico-racial como princípio organizador de todas as suas dimensões, ou seja, da pedagógica à administrativa e financeira.
A gestão democrática para a diversidade não é, portanto, um apêndice ou um tema a ser tratado em um capítulo à parte do projeto político-pedagógico. Ela é a própria essência, o cimento de uma escola que se quer republicana, laica e visceralmente comprometida com a justiça social. Esta abordagem exige que o núcleo gestor, ou seja, diretores, coordenadores e supervisores, transcenda funções meramente burocráticas para atuar como um articulador de vontades coletivas, um garantidor de condições materiais e um catalisador de transformações profundas.
Os caminhos estratégicos apontados, ou seja, a construção coletiva e permanente do Projeto Político-Pedagógico (PPP), o uso estratégico e auditável dos financiamentos públicos, a institucionalização da pauta antirracista em todos os regimentos e a ampliação dos canais de participação popular, não são simples ou isentos de conflitos. Pelo contrário, são complexos e desafiadores, pois implicam em uma redistribuição de poder e em um confronto direto com estruturas arraigadas de privilégio. No entanto, sua necessidade é inegável.
Estes mecanismos representam a materialização concreta do princípio constitucional da gestão democrática, colocado a serviço de um objetivo maior, a descolonização do currículo, o enfrentamento sistêmico ao racismo e a construção de uma educação libertadora. Trata-se de um processo contínuo de desaprendizagem de estereótipos e de reaprendizagem das histórias e contribuições dos povos africanos, indígenas e afro-brasileiros. Desta forma, a escola pode se transformar em um território de reparação, onde o conhecimento seja um instrumento de emancipação.
Em última instância, o sucesso desta empreitada medir-se-á pela capacidade da instituição escolar de garantir, de fato, o direito humano de aprender e se desenvolver com plena dignidade para todos e todas. Uma escola que não reflete a diversidade brasileira em sua estrutura, em seu corpo docente e em seu currículo nega sua própria função social. A gestão democrática antirracista, portanto, não é uma opção, mas uma condição sine qua non para a realização de uma educação que seja, efetivamente, um pilar para uma sociedade mais justa, equânime e verdadeiramente democrática. O futuro da nação depende da coragem para se empreender esta reconstrução desde as bases.
6. Referências Bibliográficas
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 1996.
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 10 jan. 2003.
BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 mar. 2008.
CANDAU, V. M. F. Educação intercultural e cotidiano escolar. Rio de Janeiro: 7Letras, 2016
GOMES, N. L. O movimento negro educador: Saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.
MACEDO, K. S. Gestão Escolar e Relações de Poder: A micropolítica na escola. Curitiba: Appris, 2017.
MILITÃO, S. C. N.; MILITÃO, L. S. C. Gestão democrática na legislação educacional nacional: avanços, problemas e perspectivas. Revista @mbienteeducação, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 64-82, 2019. Disponível em: https://publicacoes.usf.edu.br/index.php/ambeducacao/article/view/1041/798. Acesso em: 03 abr. 2025.
NASCIMENTO, B. Poema Anti-Racismo. In: RATTS, A. (Org.). Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Instituto Kuanza, 2006.
RODRIGUES, R. M. M. Educação das Relações Étnico-Raciais: desafios à gestão. Recife: Editora Universitária UFPE, 2014. Disponível em: https://editora.ufpe.br/books/ebook/educacao-das-relacoes-raciais-desafios-a-gestao. Acesso em: 03 abr. 2025.
SANTOS, B. de S. A Gramática do Tempo: Para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006.
VEIGA, I. P. A. (Org.). Projeto Político-Pedagógico da Escola: Uma construção possível. 29. ed. Campinas, SP: Papirus, 2009.
Ivan Carlos Zampin: Professor Doutor, Pesquisador, Pedagogo, Graduado em Educação Especial, Docente no Ensino Superior e na Educação Básica, Gestor Escolar e Especialista em Gestão Pública.
Elza Maria Simões: Bacharel em Administração de Empresas, Professora de Matemática, Matemática Financeira, Pedagoga, Especialista em Educação Especial.
Mery Elbe Simões Ramalho: Pós-graduação em psicanálise, Pedagoga, Graduação em Artes, finalizando pós-graduação em neuropsicologia.
Dulcinéia Alves Fernandes Fogari: Professora, Tecnóloga em Processos Gerenciais, Pedagoga, Psicanalista, Neuropsicopedagoga, Docente do Ensino Superior.
Maria Neuma Simões da Silva: Pedagoga, Especialista em Alfabetização de crianças do Ensino Fundamental, jovens do Ensino Médio e Ensino de Jovens e Adultos.
Márcia dos Santos: Graduada em Licenciatura Plena em Geografia, Pedagoga, Coordenadora de Gestão Pedagógica, Especialista em Gestão Escolar.