Impressões 33 - CUBA
Dênio Mágno da Cunha*
O título destas impressões é perigoso. Afastará a muitos, chamará atenção de outros. Uns acharão que o texto conterá uma apologia à histórica revolução cubana; outros esperarão encontrar aqui uma enxurrada de críticas à ditadura castrista, por considerarem Cuba a unha encravada no corpo da democracia da América. Ainda haverá aqueles que não saberão exatamente o que significa Cuba – ficarão na dúvida se encontrarão aqui uma tristeza profunda ou uma alegria esfuziante. Pode ser que existam também aqueles que pensarão em encontrar aqui um daqueles necrológios, elogiosos, que perdoam pecados e tornam perfeitos, os que partem desta vida para outra melhor.
Direi a todos que não encontrarão aqui um julgamento político de Fidel e muito menos uma apologia ou necrológio, ou ainda palavras de desprezo ou elogio. Encontrarão sim uma reflexão sobre como não passar por essa vida como se fosse mais um na multidão. Amando ou admirando, Cuba e Fidel não serão ignorados pela história: serão sempre um pontinho amarelo numa folha em branco a incomodar a curiosidade dos outros povos, inclusive os habitantes desta terra abençoada por Deus e bonita por natureza.
Por um destes acasos inexplicáveis, iniciei esta semana passada lendo uma das biografias sobre Francisco Julião e estou terminando de ler os principais discursos de João Goulart. Figuras da nossa história que não estão nos livros de história. Com certeza, o leitor sabe quem foram eles.
Uma enquete entre estudantes que envolvesse todos os níveis escolares, inclusive os universitários, demonstraria que os escolares brasileiros não conhecem esses dois personagens. Provavelmente, estudantes de Ciências Políticas e de História tenham ouvido falar ou possuam informações mais aprofundadas. Mesmo assim, estas informações seriam baseadas numa imagem que deles se desejou formar: agitadores, revolucionários, que queriam implantar no país o comunismo – numa época em que comunista “comia crianças”.
No momento em que morre Fidel Castro, essas reflexões surgem naturalmente e vemos o quanto a história de um país – e acredito que de qualquer outro país - é escrita e divulgada de acordo com a corrente política majoritária. Vejo democratas condenando o conteúdo educacional de Cuba – escola com partido – e vejo outros defendendo nosso conteúdo – escola “sem partido” –, tema abordado nas impressões anterior. Do que deduzimos que nossos “cidadãos” são formados para a exclusão e não para a inclusão política.
Dos quinhentos e dezessete anos de nossa história, se tivemos sessenta anos de efetiva participação política da população nos rumos da nação, foi muito. Tivemos espasmos, movimentos, períodos curtos, abortados pelo poder patriarcal que nos conduz e conforma desde Cabral. Desta forma, nossa experiência em “ser do contra” é mínima. Tendemos a concordar com tudo o que lemos e vemos. Não temos o exercício da crítica. Ressalvo que não estou dizendo que não pensamos, individualmente, de forma crítica. Estou dizendo que não temos o exercício, a ação, a prática coletiva da ação política. De modo geral, somos medrosos da expressão pública de opiniões.
Tanto é assim que Roberto DaMatta[i] ao destacar com um dos traços da nossa sociedade a expressão “sabe com quem está falando?”. Quem de nós não passou por uma situação em que, contrariando a opinião de alguém, não tenha ouvido essa expressão ou uma atitude que a retrate. No dizer de DaMatta:
“a expressão remete a uma vertente indesejável da cultura brasileira. Pois o rito autoritário indica sempre uma situação conflitiva, e a sociedade brasileira parece avessa ao conflito. Não que com isso se elimine o conflito. Ao contrário, como toda sociedade dependente, colonial e periférica, a nossa tem um alto nível de conflitos e de crises. Mas entre a existência da crise e seu reconhecimento existe um vasto caminho a ser percorrido. Há formações sociais que logo buscam enfrentar as crises, tomando-as como parte intrínseca de sua vida política e social, enquanto que, em outras ordens sociais, a crise e o conflito são inadmissíveis. (...) Tudo indica que, no Brasil, concebemos os conflitos como presságio do fim do mundo, e como fraquezas – o que torna difícil admiti-los como parte de nossa história, sobretudo nas suas versões oficiais e necessariamente solidárias” (DAMATTA, 1997, p. 183).
O que significa que escamoteamos as nossas crises; que suportamos ao extremo a nossa condição adversa; e que só colocamos a boca no trombone quando o caldo já entornou. Antes disto, ficamos na moita, esperando ver o que acontece.
E não é sem razão que um de nossos clássicos da sociologia brasileira é o mito do “homem cordial”. Mal interpretado, transformou-se na descrição de um povo que tem entre seus valores preferenciais a cordialidade em detrimento da franqueza na expressão de suas ideias.
A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. (...) Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo – ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças. (BUARQUE DE HOLANDA, 1995, p. 146-147)[ii]
A verdade é que usamos desta cordialidade para mascarar nossos conflitos, como peça de resistência aos comandos diários. Somos rebeldes, internamente, e cordatos, externamente. E neste conflito, preferimos sempre a cordialidade à exposição pública de nossa contrariedade.
Provavelmente, obedecemos cegamente ao que nos disseram por anos a nossa elite econômica, porque também somos marcados pela Casa Grande a nos colocar nas Senzalas sempre que o menor sinal de oposição surge – no sentido metafórico e factual[iii].
A somatória destes três mitos – “Sabe com quem está falando?”, “o homem cordial” e a “Casa-Grande & Senzala” – nos fez temerosos ao destaque público pelo exercício da oposição, pela crítica, pela contestação. Ao contrário, solitariamente, em pequenos círculos, podemos ser heróis de causas perdidas pelas quais lutaremos até a morte, contra tudo e contra todos; desafiaremos os poderosos, libertaremos a nação do julgo dominador, mataremos nossos inimigos, implantaremos a pena de morte.
Esta contradição entre o comportamento público e privado emperrou a nossa formação política, fez do Brasil o eterno país do futuro. Ao contrário do acontecido em Cuba, vamos ficar eternamente escondidos na floresta do espaço privado, esperando que as mudanças aconteçam, para então descermos a serra e mudar o país.
Peço desculpas, se pareço dizer que não somos um povo heroico. Somos, mas preferimos o “berço esplendido”, se possível sem ter de levantar a “clava forte”.
E como a justificar essa digressão, iniciada em Cuba, terminamos com as palavras do presidente americano referindo-se a Fidel Castro, e a uma nota sobre o desempenho de Cuba, na educação:
“A história vai registrar e julgar o enorme impacto desta figura singular nas pessoas e no mundo ao seu redor”. (Barack Obama)[iv]
Na América Latina e no Caribe, apenas Cuba atingiu os seis objetivos de Educação no período 2000-2015, informou nesta quinta-feira (9) a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura. (Unesco)
"Apenas um a cada três países do mundo atingiu a totalidade dos objetivos mensuráveis da Educação para Todos (EPT) estabelecidos no ano 2000", destaca o relatório de acompanhamento do programa, assinalando que "na América Latina e no Caribe, Cuba foi a única nação a cumprir estes objetivos". O Brasil cumpriu apenas duas de seis metas mundiais para a educação, de acordo com a organização.[v]
Com estas citações finais, não queremos entrar em conflito com ninguém a respeito de Cuba e Fidel Castro. Não é de nossa natureza comprar briga desnecessária. Apenas desejamos chamar a atenção para a relevância da ação política para a construção do futuro da educação e do país. Se existe alguma qualidade na história da revolução cubana é a vontade de transformação da realidade do país. E nesta hora, em que a mídia expõe as virtudes e defeitos da nação caribenha, seria positiva uma reflexão sobre essa nossa forma de agir politicamente. Estamos mesmo querendo construir o Brasil do Futuro? E que País será este que queremos? Ele existe?
Temos como nação uma necessidade capital de um sistema educacional que nos permita a ampliação e aprofundamento de nossa capacidade crítica, formador de cidadão que não se escondam atrás de debates supérfluos e encararem de frente os grandes problemas que nos assolam, sob pena de continuarmos nessa sociedade arcaica, patriarcal, quase feudal, em que vivemos.
Individualmente, sugiro deixarmos de ser papagaio de poleiro, a repetir o que ouvimos de outros, formando uma cantilena que solidifica a pobreza e a miséria do pensamento. Esta pequena ação de ouvir e pesquisar sobre o que ouvimos, é demonstração da qualidade da educação de um país. E por aqui, o nível anda crítico. Ou seria acrítico?
* Dênio Mágno da Cunha, professor em Carta Consulta, em Una-Unatec, Doutorando em História da Educação pela Universidade de Sorocaba. Considera-se, mesmo que limitadamente, um ser político.
[i] Da Matta, Roberto. Carnaval, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
[ii] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
[iii] FREYRE, Gilbrto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1987.
[iv] G1.Globo.com. Obama diz que ‘história vai julgar’ impacto de Fidel Castro. Disponível em http://g1.globo.com/mundo/noticia/apos-morte-de-fidel-obama-diz-que-historia-vai-julgar-impacto-do-ex-lider.ghtml. Acesso em 27 nov. 2016.
[v] G1.Globo.com. Cuba é único latino-americano a atingir metas de educação, diz Unesco. Disponível em http://g1.globo.com/educacao/noticia/2015/04/cuba-e-unico-latino-americano-atingir-metas-de-educacao-diz-unesco.html. Acessado em 27 nov. 2016.