Ler a palavra e o mundo: contribuições da hermenêutica para a Pedagogia de Paulo Freire
Priscila Monteiro Chaves [1]
Dirlei de Azambuja Pereira [2]
Daiana Corrêa Vieira [3]
Resumo: O ensaio intenciona discutir as contribuições da hermenêutica na constituição da pedagogia freiriana. Nesse sentido, partimos das considerações de Bombassaro (2010) acerca da temática e problematizamos algumas reflexões de Freire (1997a, 1997b) sobre leitura da palavra/leitura do mundo, leitura do texto/leitura do contexto, interpretação da realidade e o ato de compreender como elemento integrante do jogo dialogal entre perguntar e responder. Acreditamos que há uma influência muito potente da hermenêutica no construto freiriano e que essa, por seu turno, fundamenta uma pedagogia crítica, original e criativa que almeja a mudança da sociedade em sua radicalidade.
Palavras-chave: Paulo Freire; pedagogia; hermenêutica.
Bombassaro (2010), ao redigir o verbete Hermenêutica para o Dicionário Paulo Freire, inicia sua argumentação chamando a atenção para a diversidade de influências que são encontradas na teoria de Paulo Freire. Após listá-las, afirma que “são recorrentes os temas filosóficos abordados por Wilhelm Dilthey, Martin Heidegger, Hans Georg Gadamer e Paul Ricoeur [4]” (BOMBASSARO, 2010, p. 204). A ligação a estes autores decorreria, segundo Bombassaro (2010), da vinculação, por parte de Freire, à fenomenologia e à hermenêutica. Em relação à segunda corrente filosófica, declara:
Enquanto teoria geral da interpretação, a hermenêutica encontra na questão da compreensão um dos seus núcleos conceituais e ela opera como um pressuposto básico nos escritos e no pensamento de Freire. Embora não se confunda com uma metodologia de investigação empírica, a hermenêutica considera que todo processo de interpretação da realidade pode ser descrito como uma forma de compreensão. No caso específico de Freire, a experiência de interpretação da realidade se realiza enquanto um processo compreensivo, que leva o homem a perceber a si mesmo e as suas circunstâncias, o mundo. Assim, o homem faz sua entrada no mundo e permanece nele enquanto intérprete, vinculado à tradição que nele opera e sobre a qual ele próprio atua, como sujeito da história. Por isso, interpretar a realidade, fazer a leitura do mundo significa sempre compreender desde a linguagem na qual o humano mesmo está existencialmente situado (BOMBASSARO, 2010, p. 204).
O contraponto ao pensamento que acredita que um conhecimento só atinge sua legitimidade quando não está influenciado por crenças, dois pontos, de imediato, se sobressaem no legado teórico freiriano: leitura da realidade e leitura de mundo. Essas duas categorias já partem do pressuposto apresentado por Casanova de que, além de ser impossível suspender os pressupostos; se realmente atingíssemos algo assim, o que pensamento resultante seria indesejável e infrutífero. A suspensão dos pressupostos do sujeito denotariam uma dissolução de toda a experiência prévia e, por conseguinte, de toda a expectativa de sentido no que compete aquilo que se deseja ser conhecido (2010). Isso demanda uma maneira “crítica de compreender e de realizar a leitura da palavra e a leitura do mundo [que] está, de um lado, na não negação da linguagem simples, [...] na sua não desvalorização por constituir-se de conceitos criados na cotidianidade” (FREIRE, 1998, p. 33).
Essas duas expressões hermenêuticas freirianas – leitura do mundo, leitura da realidade – ocupam um espaço importante na constituição de sua teoria. Uma das mais emblemáticas frases de Freire (1997a, p. 11), a qual assevera que a “leitura do mundo precede a leitura da palavra”, é uma declaração hermenêutica por excelência. Bombassaro (2010, p. 205), ao analisar a supracitada afirmação de Freire, observa que nela “o círculo hermenêutico da compreensão se explicita na relação autorreferencial que une o mundo à palavra e a palavra ao mundo”. Conforme ainda o autor: “Se, por um lado, a ‘leitura do mundo’ torna-se a condição de possibilidade da leitura da palavra, por outro lado, é a própria palavra que permite dizer o mundo” (BOMBASSARO, 2010, p. 205). Assim, “a palavra somente pode instaurar o mundo do homem na medida em que o próprio homem atribui significado ao mundo, num constante e consciente processo de ‘desvelamento’ da realidade” (BOMBASSARO, 2010, p. 205). E conclui Bombassaro (2010, p. 205): “Em sua radical historicidade, a compreensão se realiza como uma fusão de horizontes, e seu fazer se constitui como história efetual a partir da própria ação”.
Tomando a exposição precisa de Bombassaro (2010), no que tange essa relação hermenêutica de ler o mundo (e também a realidade), a título de ilustração (e realizando um alongamento da frase de Freire, acima descrita) citamos outro trecho constante na obra A importância do ato de ler. Diz o pedagogo brasileiro [5]: “Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto” (FREIRE, 1997a, p. 11). E, ao justificar a sua escrita sobre a importância do ato de ler, Freire (1997a, p. 11) assevera que se sentiu levado: “a ‘reler’ momentos fundamentais de minha prática, guardados na memória, desde as experiências mais remotas de minha infância, de minha adolescência, de minha mocidade, em que a compreensão crítica da importância do ato de ler se veio em mim constituindo”. Ao escrever o referido texto, Freire (1997a, p. 12) argumenta que foi tomando distância dos diversos “momentos em que o ato de ler” foi constituindo-se na sua experiência existencial. Por fim, declara sabiamente: “Primeiro, a ‘leitura’ do mundo, do pequeno mundo em que me movia; depois, a leitura da palavra que nem sempre, ao longo de minha escolarização, foi a leitura da ‘palavramundo’” (FREIRE, 1997a, p. 12).
Também como ilustração acerca da categoria leitura da realidade, é relevante referenciar uma resposta de Freire ao questionamento de Ira Shor, presente na obra Medo e Ousadia – O Cotidiano do Professor, quando este perguntou ao pedagogo brasileiro sobre o vínculo entre leitura da palavra e leitura da realidade. Disse Freire (1997b, p. 165):
O domínio escolar das palavras só quer que os alunos descrevam as coisas, não que as compreendam. Assim, quanto mais se distingue descrição de compreensão, mais se controla a consciência dos alunos. Eles são mantidos só no nível superficial da realidade e não vão além, não chegam a uma compreensão crítica profunda sobre o que torna a sua realidade o que ela é. Esse tipo de consciência crítica dos alunos seria um desafio ideológico à classe dominante. Quanto mais essa dicotomia entre ler palavras e ler a realidade se exerce na escola, mais nos convencemos de que nossa tarefa, na escola ou na faculdade, é apenas trabalhar com conceitos, apenas trabalhar com textos que falam sobre conceitos. Porém, na medida em que estamos sendo treinados numa vigorosa dicotomia entre o mundo das palavras e o mundo real, trabalhar com conceitos escritos num texto significa obrigatoriamente dicotomizar o texto do contexto. E então nos tornarmos, cada vez mais, especialistas em ler palavras, sem nos preocupar em vincular a leitura com uma melhor compreensão do mundo. Em última análise, distinguimos o contexto teórico do contexto concreto. Uma pedagogia dicotomizada como essa diminui o poder do estudo intelectual de ajudar na transformação da realidade.
Na instigante resposta oferecida por Freire ao questionamento feito por Ira Shor, há uma crítica veemente à separação da leitura da palavra com relação à leitura da realidade. Freire observa que essa dicotomização inviabiliza a compreensão crítica sobre o mundo real. A leitura crítica da realidade, quando desenvolvida, tem uma significativa importância na transformação social, já que qualquer realidade para ser modificada, deve ser, primeiramente, via reflexão, compreendida. Essa leitura crítica atravessa toda a história, toda formação. Não é algo dado, visível ou concreto. A sua realidade material se faz na relação entre os homens.
Além dos apontamentos anteriores, que se presentificam na obra freiriana, outra categoria hermenêutica necessita ser mencionada nessa análise. Trata-se do compreender, apresentado na teoria de Freire por meio do jogo dialogal entre perguntar e responder (BOMBASSARO, 2010, p. 205). Com base nesse movimento dialógico, os homens potencializam a constituição de uma leitura crítica da realidade.
Essa leitura crítica é a interpretação do “mundo da experiência sensorial; de outro, na recusa ao que se chama de ‘linguagem difícil’, impossível, porque desenvolvendo-se em torno de conceitos abstratos (FREIRE, 1998, p. 34). Daí emerge a validade dessa corrente no construto teórico freiriano e suas contribuições para a fundamentação da pedagogia, original e criativa, cunhada por Paulo Freire.
Referências:
CASANOVA, Marco Antônio. Apresentação. In: GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica da obra de arte. Seleção e tradução: Marco Antonio Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2010. p.VII-XVII.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 35. ed. São Paulo: Cortez Editora, 1997a.
________. Professora sim, Tia não: Cartas a quem ousa ensinar. São Paulo: Olho d' água, 1998.
________; SHOR, Ira. Medo e Ousadia – O Cotidiano do Professor. 7. ed. Trad. Adriana Lopez. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997b.
HERMENÊUTICA. BOMBASSARO, Luiz Carlos. In: STRECK, Danilo; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José (Orgs.). 2. ed. Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010. p.204-205.
RICOEUR, Paul. Teoria da Interpretação. Lisboa: Edições 70, 1987.
[1] Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) - Bolsista CNPq; Mestra em Educação e Graduada em Letras (Português/Francês) pela mesma Universidade. E-mail: pripeice@gmail.com
[2] Professor Adjunto na Universidade Federal de Pelotas (UFPel); Doutor e Mestre em Educação pelo PPGE/FaE/UFPel. Especialista em Pedagogia Gestora pela FACVEST; Especialista em Mídias na Educação pela UFSM; Graduado em Pedagogia pela UFPel. E-mail: pereiradirlei@gmail.com
[3] Mestra em Educação pelo PPGE/FaE/UFPel; Especialista em Educação Básica: Teoria e Prática Docente pela URCAMP; Especialista em Mídias na Educação pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense; Graduada em Letras (Português/Espanhol) pela Universidade Católica de Pelotas (UCPEL). Docente nas Redes de Ensino Municipal e Estadual do RS. E-mail: daianac.vieira@gmail.com
[4] Em Teoria da Interpretação, Paul Ricoeur manifesta: “Em vez de afirmar que um sujeito já senhor do seu próprio modo de estar-no-mundo projeta o a priori da sua autocompreensão no texto e a julga descobrir no texto, digo que a interpretação é o processo pelo qual o desvelamento de novos modos de ser – ou, se preferirmos Wittgenstein a Heidegger, de novas formas de vida – proporciona ao sujeito uma nova capacidade de a si mesmo se conhecer” (RICOEUR, 1987, p. 106). Desse modo, parte-se do principio hermenêutico de que ler, verbo que será usado em duas categorias freirianas do presente texto, é também o ato que possibilita tornar-se aquilo que se pode ser.
[5] Referimo-nos também, neste escrito, a Paulo Freire como pedagogo brasileiro.