14/11/2017

O ENEM E A Surdez Generalizada

*Dênio Mágno da Cunha

Aguardava a poeira baixar para comentar alguns aspectos do grande filtro para o acesso ao ensino superior: o ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio. Como introdução alguns números: o exame é aplicado em 1.750 cidades no Brasil; foi realizado em duas etapas pela primeira vez e os números de inscritos chegaram a 6,7 milhões neste ano.   Este último número, inferior aos 9,2 milhões da edição passada, confirmando uma tendência de redução do número de estudantes no Brasil. Fato que um dia aconteceria, dado o caminho de decréscimo do número médio de filhos das famílias brasileiras ao longo do tempo, e ao envelhecimento da população.[1]

O tema da redação é sempre uma incógnita e o deste ano, “Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil”, foi especialmente positivo para a conscientização dos jovens e, através de sua repercussão, da sociedade como um todo sobre um dos nossos maiores problemas sociais: a acessibilidade.

Infelizmente nossa cultura de natureza discriminatória exige que tenhamos políticas com força de lei, para dar inclusão a quem não deveria estar em estado de exclusão. Utopicamente, sempre imagino uma sociedade regida pela única Lei do respeito e amor ao próximo, sendo desnecessários procedimentos obrigatórios em relação a estes dois aspectos. Como o assunto é o ENEM, não cabe aqui discorrer sobre várias, situações de desrespeito e falta de amor com e entre o conjunto da população brasileira, em aspectos tão diversos quanto a cor da pele e as escolhas individuais, passando por aqueles milhões que não têm acesso sequer aos direitos fundamentais. O acesso ao ensino gratuito, entre eles. A grande verdade é que a sociedade brasileira é uma sociedade formada em sua grande maioria por excluídos. Aliás, deveríamos inverter o raciocínio pois são tantos os excluídos que os “incluídos” é que deveriam ser o excluídos. (Bem, os políticos já são um exemplo dessa inversão, mas isso é outra história).

Lembro aqui de uma amiga, militante e lutadora da causa quilombola; de um amigo que bem humorado, enfrenta com galhardia os desafios de um cadeirante numa cidade de calçadas excludentes; de uma mãe, representantes de tantas, que cuida de seu filho com Síndrome de Down e não encontra escola e professores adequados. E por aí vai...

Mas um fato me chamou a atenção: pessoas acharem engraçado a pretensa confusão que possa ter havido entre os candidatos do Enem em relação a surdez. Surdo usa libras? Libras tem relação com horóscopo? O que é surdez? Todo surdo é cego? Todo surdo é mudo? É preciso rampa para o portador de surdez ter acesso ao trabalho?

Se houve essa confusão, (ainda não é possível saber e nem deveríamos saber, dada a confidencialidade dos dados), ela não é digna de riso. Como não é digno de riso as piadas que circulam na internet sobre a qualidade do texto de nossos alunos nas redações anteriores. As famosas “piadas do Enem” são sem graça. São mesmo denunciadoras da incapacidade que temos de inserir nosso aluno no mundo da cultura, no mundo do chamado conhecimento geral. Pessoalmente, como professor do ensino superior, recebendo alunos recém-ingressos na universidade, depois de anos na atividade, nunca encontrei um aluno que pudesse cometer tais desatinos. Encontrei quem desconheça, mas que conheça de forma tão estapafúrdia a diferença entre um surdo, um cego, um mudo e um cadeirante, nunca. Mas parodiando a frase de Jorge Luis Borges: “Não creio que existam, mas que existem, existem”, uma vez que ainda nos atemos a ensinar quem foi o descobridor do Brasil e quem assinou a Lei Aurea, repetidamente.

Ainda sobre o ENEM, tenho esperanças que o seu resultado não seja utilizado como ferramenta de competição entre as escolas e nem como forma de diferenciação da qualidade do ensino destas mesmas instituições, como acontece no ENADE – Exame Nacional do Desempenho de Estudantes. Primeiro porque julgar uma escola pelo resultado de uma prova sujeita a tantas influências exógenas, é inadequado e sujeito a erros crassos; segundo porque reforça o caráter de “cursinho” do ensino médio, deixando em segundo plano a sua função de formação do cidadão, de orientador na escolha do caminho das profissões, refletindo diretamente na qualidade do futuro da nação. Portanto, sem índices classificatórios, por favor.

Finalmente, observo que surgiram críticas ao conteúdo das provas em seus aspectos formais. O significado destas críticas (já comprovadas) é a falta de preparação dos professores para utilização adequada da metodologia de elaboração de questões. Essa é uma questão permanente. Tanto no Enem quanto no Enade, não existe um preparo adequado dos elaboradores de questão, assim como um processo seletivo das questões a serem utilizadas na prova. A avaliação da aprendizagem no Brasil não é levada a sério, infelizmente. Mais um fator que deve ser levado em conta no processo de evolução da avaliação da qualidade de nossa educação: professores devem ser mestres em elaborar questões ou, pelo menos, devem considerar esse aprendizado como essencial para o exercício de sua profissão.

* Professor Doutor em Educação pela Uniso, Universidade de Sorocaba. Professor em Centro Universitário Una. Professor e Consultor de Educação em Carta Consulta. Leva a sério a aprendizagem de elaboração de questões para avaliação da aprendizagem.  

 

[1] https://istoe.com.br/100069_NUMERO+DE+FILHOS+POR+FAMILIA+VOLTA+A+AUMENTAR/ Ao contrário do que sugere o título da matéria, os números demonstram um reversão pontual num processo descendente.

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