12/05/2020

O STF julga “Caçadas de Pedrinho”: escurecendo o equívoco

O STF julga “Caçadas de Pedrinho”: escurecendo[1] o equívoco

 

 

Vanilda Honória dos Santos

Doutoranda em Teoria e História do Direito CCJ/UFSC

 

Em publicação ocorrida em 07/05/2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) pautou o julgamento do recurso, em sessão virtual, referente ao Mandado de Segurança n. 30.952, impetrado pelo Instituto de Advocacia Racial e Ambiental, com sede no Rio de Janeiro, para o próximo dia 15/05/2020. O referido MS trata do caso “Caçadas de Pedrinho”[2], que teve grande repercussão na mídia nacional ao chegar ao STF. O mesmo ocorre hodiernamente, uma vez que vários veículos da mídia noticiaram o julgamento[3].  

Faz-se necessário discutir o equívoco que frequentemente pode ser identificado em análises em grande medida reducionistas e pouco acuradas acerca da legitimidade do pedido. A trajetória do caso até o STF[4] teve origem na denúncia feita via processo administrativo pelo Técnico em Gestão Educacional da Secretaria de Estado do Distrito Federal, Antonio Gomes da Costa Neto, ao Ministério da Educação, Conselho Nacional de Educação (CNE), Câmara de Educação Básica (CEB). A denúncia tem como fundamentação o fato da referida Secretaria não adotar a perspectiva das relações étnico-raciais para endossar e adquirir obras que se encontram nas referências das escolas, no caso em questão, o livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, que se encontrava como referência em uma escola da Rede Particular de Ensino do Distrito Federal. O autor da denúncia apresenta no processo uma análise da representação negativa do negro no livro, endossada por diversos estudos sobre a questão (CNE/CEB, 2011).

A já mencionada polêmica que ensejou o caso “Caçadas de Pedrinho” ficou restrita à discussão sobre a liberdade de expressão, o que ainda se percebe nas abordagens sobre a questão, negligenciando o ponto central, que é a discussão acerca da desconstrução do racismo nos estudos literários e nas atividades do Estado (COSTA NETO, 2015, p. 18). E isto, porque em nenhum momento, nem durante a tramitação do processo administrativo, nem na petição inicial e discussão no STF se apontou um possível banimento da obra de Monteiro Lobato, pelo contrário, dada a importância do autor para a literatura e para a educação nacional, o caso representaria como uma boa oportunidade para suscitar um debate crítico sobre racismo, discriminação e educação para as relações étnico-raciais (COSTA NETO, 2015, p. 20).

O Mandado de Segurança propõe a adoção, como medida de reparação, em obras da literatura nacional, de uma contextualização acerca dos fatores históricos, epistemológicos, sociológicos e políticos que influenciaram a literatura nacional, e, obviamente, o denominado racismo científico e a eugenia, amplamente adotados pelo Estado brasileiro na primeira metade do século XX[5]. Ademais, a construção da autoestima dos negros brasileiros, sobretudo, das crianças e adolescentes, tem sido historicamente afetada pela representação negativa da negritude, os estereótipos, sendo a educação um dos campos de perpetuação dessa ordem injusta (BRASIL, 2011, p.14).

A Resposta do CNE foi publicada no Parecer CNE/CEB 15/2010[6], no qual as abordagens expostas acima não foram adotadas, o que levou o caso ao STF. O caso é interpretado nesta análise como uma iniciativa de reparação da escravidão, uma vez que destaca entre seus objetivos o reconhecimento do racismo e a busca de sua desconstrução, pautado nos princípios filosófico-jurídicos, presente na Constituição Federal e na diretriz jurídico-política contemplada no Estatuto da Igualdade Racial (BRASIL, 2010). É preciso ir além do combate e da prevenção ao racismo (COSTA NETO, 2015, p. 27), e, sobretudo, atacar diretamente as raízes epistemológicas, entre elas, a da literatura.

Em 11 de maio de 2020, o impetrante ratificou e reiterou via petição, o pedido de destaque da matéria formulado em 14/02/2017, para que a mesma seja submetida ao Plenário da Egrégia Corte garantindo-se a sustentação oral on-line (sessão plenária por vídeoconferência), conforme o estatuído pela Resolução n. 642/2019 e n. 672/2020 – ou a remessa para pauta de julgamento presencial – na dicção do art. 4, II, da Resolução n. 642/2019. O referido pedido é de suma relevância considerando a matéria sobre a qual versa o julgamento, as políticas públicas de combate ao racismo no âmbito das instituições do Estado brasileiro, com ênfase nas educacionais. Portanto, é de interesse do conjunto da sociedade brasileira que a argumentação a partir dos votos orais dos Ministros do STF, assim como a sustentação oral[7] da defesa, sejam garantidos e tornados públicos.

 

 

Referências

BRASIL. Estatuto da Igualdade Racial. (2010). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm. Acesso em: 24 mar. 2017.

BRASIL. (2011). Mandado de Segurança 30.952. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=282504. Acesso em: 17 mar. 2017.

COSTA NETO, Antonio Gomes da. A Desconstrução do Racismo através de Monteiro Lobato: Uma Análise do Caso “Caçadas de Pedrinho”. Caderno de Letras e Comunicação, Jul/Dez, 2015, p. 1-22. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/cadernodeletras/article/view/7338/5125. Acesso em: 17 mar. 2017.

INSTITUTO DE ADVOCACIA RACIAL E AMBIENTAL. Petição de ratificação de pedido de destaque MS 30.952, 11 mai. 2020. Acervo da pesquisadora.

SANTOS, Vanilda Honória dos. A Reparação da Escravidão Negra no Brasil: Fundamentos e Propostas. Revista Eletrônica OAB/RJ, Rio de Janeiro, V.29, N. 2, Jan./Jun. 2018, p. 1-26.

 

[1] O termo “escurecendo” é aqui utilizado na perspectiva de desconstruir o racismo linguístico, que neste caso, atribui o sentido de tornar evidente e o compromisso com a verdade às palavras que se referem ao que é considerado “claro”, “alvo”, “branco”; enquanto erros, equívocos e inverdades estariam representados pelo oposto, por exemplo, “no escuro”, “lado negro”.

[2]Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=282504. Acesso em: 17 mar. 2017.

[3] Vejam-se: Ancelmo Gois, O Globo, 11/05/2020. Tia Anastácia: O STF julga, dia 15, livro de Monteiro Lobato.  Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/tia-nastacia-o-stf-julga-dia-15-livro-de-monteiro-lobato.html; Migalhas, 11/05/2020. Questão racial em obra de Monteiro Lobato volta a ser discutida pelo STF.  Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/326485/questao-racial-em-obra-de-monteiro-lobato-volta-a-ser-discutida-pelo-stf.

[4] Sobre a abordagem aqui proposta, veja-se em: SANTOS (2018).

[5] “A obra traz “à tona um elemento central no ideário pedagógico brasileiro no Segundo Império e ao longo da Primeira República: o higienismo”, que teve seu apoio na Academia Imperial de Medicina, o que se constituiria na primeira política pública para implementação das práticas eugênicas. Chegando ao ápice com a Constituição de 1934, de 16 de julho de 1934, em seu artigo 138, letra “b”, que define a política oficial da União, dos Estados e aos Municípios ao “estimular a educação eugênica” para a prática da ideologia para o branqueamento da nação, em que durante esse período “os reformadores educacionais nunca tivessem reconhecido especificamente o papel da raça em suas políticas, suas políticas refletiam os valores raciais predominantes” (BRASIL, 2011, MS, p.12-13).

[6] O Parecer CNE/CEB 15/2010 foi reexaminado pelo Parecer CNE/CEB nº 6/2011, disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=8180-pceb006-11- pdf&category_slug=junho-2011-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 17 mar. de 2017.

[7] Sobre essa questão, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil já se manifestou. Veja-se em: https://www.conjur.com.br/dl/oficio-102020-pco-18320-oab-assunto.pdf. Acesso em: 12 mai. 2020.

Assine

Assine gratuitamente nossa revista e receba por email as novidades semanais.

×
Assine

Está com alguma dúvida? Quer fazer alguma sugestão para nós? Então, fale conosco pelo formulário abaixo.

×