Pensando sobre as Diferenças entre o Currículo Prescrito e o Praticado na Realidade Escolar
Ivan Carlos Zampin;
Resumo
Este artigo analisa criticamente as diferenças entre o currículo prescrito, ou formal, e o currículo efetivamente praticado no cotidiano escolar. Fundamenta-se a compreensão do currículo não apenas como documento normativo, mas como artefato social mediado por múltiplos fatores relacionais e contextuais. Com base em autores clássicos e contemporâneos, o estudo destaca como as especificidades do ambiente escolar, as condições materiais, a formação docente e as interações professor-aluno influenciam a concretização do currículo. A reflexão contribui para repensar a formação docente e as políticas educacionais, ampliando o diálogo entre teoria e prática pedagógica.
Palavras-chave: Currículo Prescrito, Prática Curricular, Cotidiano Escolar, Mediação Docente, Formação de Professores, Políticas Educacionais.
Introdução
O currículo escolar, conforme descrito por Sacristán (2000), não é apenas um plano formal apresentado nos documentos oficiais, mas também um processo vivo e dinâmico que se configura na prática docente dentro das salas de aula e espaços escolares. O currículo prescrito, em sua dimensão normativa, aspira a organizar conteúdos, objetivos e metodologias que governam o processo educativo, trazendo uma ideologia e uma visão de mundo que orientam a ação dos sujeitos envolvidos. Entretanto, a realidade da escola aponta frequentemente para desvios, adaptações e negociações que fazem emergir o currículo praticado, que pode divergir significativamente do prescrito.
Essa tensão entre currículo formal e efetivo revela a complexidade da prática pedagógica e a necessidade de compreender a pluralidade de fatores que atuam nesse campo. As condições materiais e estruturais das escolas, as diversidades socioculturais dos alunos, as competências e os valores dos professores, bem como a influência das políticas públicas, configuram um cenário onde o currículo prescrito é frequentemente reelaborado e reinventado na ação. Como observa Apple (2006, p. 45), "o currículo nunca é simplesmente um conjunto de conteúdos a ser transmitido, mas sempre uma construção social que reflete relações de poder e visões de mundo particulares".
A complexidade dessa relação aumenta quando consideramos que, segundo Moreira e Candau (2008, p. 78), "as políticas curriculares contemporâneas têm enfatizado a padronização e a responsabilidade criando tensões adicionais no trabalho docente". Esta pressão por resultados mensuráveis frequentemente entra em conflito com as necessidades reais dos estudantes e com as condições concretas de trabalho nas escolas.
Referenciais Teóricos
O conceito de currículo formal ou prescrito pode ser compreendido como o conjunto de diretrizes e documentos elaborados por órgãos oficiais que configuram uma proposta educativa para determinado sistema ou nível de ensino. Gonçalves (2018, p. 34) destaca que esse currículo é "resultado de escolhas políticas e culturais, que refletem interesses sociais e epistemológicos específicos, frequentemente vinculados a projetos hegemônicos de sociedade".
Por outro lado, o currículo real ou praticado é a configuração concreta do currículo no cotidiano escolar. Segundo Sacristán (2000, p. 56), "o valor real do currículo é dado na sua concretização, na forma como é realizado e sentido pelos professores e alunos". Essa visão dialoga com os estudos de Bernstein (1975, p. 23), que apontam para a existência de um currículo oculto, cujos elementos são aprendidos implicitamente por meio das interações escolares cotidianas, "transmitindo valores, atitudes e comportamentos que perpetuam as estruturas sociais existentes".
A mediação docente é central nesse processo entre prescrição e prática. Demon (2002, p. 67) enfoca que "o professor é agente ativo que interpreta, negocia e cria estratégias para adequar o currículo às necessidades e realidades dos alunos, muitas vezes promovendo adaptações que relativizam o documento formal". Essa atuação exige formação contínua e reflexão crítica sobre os valores e conteúdos que orientam a ação pedagógica.
Segundo Freire (1996, p. 89), "a educação verdadeira não se faz de A para B, mas de A com B, numa relação dialógica que reconhece os saberes dos educandos". Esta perspectiva ajuda a compreender por que o currículo praticado necessariamente difere do prescrito, uma vez que se constrói na relação viva entre professores e estudantes.
Desenvolvimento
O abismo entre currículo prescrito e praticado manifesta-se por diversas razões. As escolas, por exemplo, lidam com desafios como falta de recursos, turmas heterogêneas, e contextos sociais complexos que obrigam ajustes no ritmo e nos conteúdos. Os professores, ao se depararem com essa realidade, atuam como mediadores críticos, improvisando, selecionando e reinterpretando orientações para melhor atender a situação de seus alunos. Como afirma Tardif (2014, p. 102), "os saberes docentes são plurais, construídos na experiência e no confronto com as situações concretas de trabalho".
Pesquisa realizada por Rolkouski e Feliciano (2017, p. 145) com docentes do Ensino Fundamental indica que, "embora o currículo oficial proponha um conjunto extenso e específico de habilidades e conteúdos, a prática pedagógica revela uma priorização distinta, com foco em assuntos considerados mais próximos da experiência dos alunos ou mais factíveis de serem trabalhados dadas as condições da escola". Isso evidencia como a implementação curricular envolve um processo contínuo de negociação entre teoria e realidade.
A formação docente, portanto, tem papel decisivo para minimizar a distância entre prescrição e prática. Professores bem formados, críticos e reflexivos conseguem adaptar os currículos formais sem perder sua essência, promovendo práticas educativas mais significativas e contextualizadas. Ao contrário, uma formação deficiente pode estimular a reprodução acrítica do currículo prescrito ou gerar desarticulações profundas entre proposta e prática. Conforme Nóvoa (2019, p. 156) argumenta, "a formação docente precisa preparar para a complexidade do ofício, desenvolvendo a capacidade de análise e intervenção crítica na realidade escolar".
Além disso, as políticas educacionais e a gestão escolar influenciam diretamente na realização do currículo. A imposição de metas e avaliações externas frequentemente induz práticas pedagógicas que visam mais o cumprimento formal do que o aprendizado efetivo. Tal pressão gera resistências e adaptações por parte dos atores escolares, que buscam preservar o sentido humano e ético da educação. Como observa Ball (2011, p. 78), "as políticas de performatividade criam uma cultura de simulacro, onde as aparências do sucesso tornam-se mais importantes que o sucesso real".
A análise de documentos oficiais revela ainda que, segundo Lopes e Macedo (2011, p. 134), "os currículos prescritos frequentemente desconsideram os conhecimentos locais e as particularidades culturais das comunidades escolares, gerando tensões que são resolvidas na prática cotidiana através de processos de hibridização cultural". Esta constatação reforça a importância do professor como intelectual transformador, capaz de articular o universal e o particular em sua prática pedagógica.
Conclusão
As diferenças entre o currículo prescrito e o praticado no cotidiano escolar constituem um fenômeno complexo, fruto da interação entre fatores institucionais, sociais, pedagógicos e humanos. O currículo formal traz orientações essenciais e conteúdos legitimados socialmente, mas sua concretização requer mediação crítica por parte dos professores. Essa mediação é fundamental para que a educação cumpra seu papel de promoção de aprendizagem significativa e contextualizada, capaz de responder às diversidades e desafios contemporâneos.
O reconhecimento dessas diferenças deve orientar não apenas políticas educacionais mais flexíveis e inclusivas, mas também a formação docente, que precisa preparar educadores para lidar com a complexidade e a dinamicidade do ambiente escolar. O docente, assim, surge como agente criativo e reflexivo, cuja prática curricular é um processo vivo de construção e reconstrução. Nesse espaço entre a teoria e a prática, é onde a verdadeira transformação educacional pode florescer, permitindo que os saberes locais e as realidades dos alunos dialoguem com os conhecimentos estabelecidos.
Esta perspectiva reforça que a qualidade da educação está intrinsecamente ligada à valorização da profissão docente e à confiança em seu julgamento pedagógico. Quando os professores são reconhecidos como intérpretes curriculares essenciais, a escola se torna um ambiente mais democrático e responsivo. Dessa forma, o currículo deixa de ser um simples documento norteador para se tornar uma ferramenta dinâmica de inclusão e justiça social.
Para finalizar, pensar o currículo é pensar a educação em sua dimensão mais ampla, confirmando que entre o documento oficial e a prática real há um espaço rico de negociação, aprendizagem e transformação, fundamental para a qualidade e a justiça social da educação. A efetiva democratização da educação passa necessariamente pelo reconhecimento da autonomia docente na recriação curricular, valorizando os saberes da experiência e a capacidade de inovação dos professores. É nesse hiato criativo que se constrói uma escola verdadeiramente comprometida com a formação de cidadãos críticos e com um futuro mais equitativo.
Referências Bibliográficas
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Ivan Carlos Zampin: Professor Doutor, Pesquisador, Docente no Ensino Superior, Ensino Fundamental, Médio e Gestor Escolar.
Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/2342324641763252