Processos de discriminação de profissionais e qualificas em contextos tipicamente masculinos: um contributo para a gestão da diversidade
O presente estudo tem como objetivo principal a análise dos processos de discriminação de profissionais qualificadas e imigrantes em contextos organizacionais masculinos, de forma a contribuir para a área da gestão da diversidade. Com este fim, foca-se em três categorias distintas – mulheres, imigrantes e qualificadas.
O mercado de trabalho português é caraterizado por reunir assimetrias significativas em relação ao género, apesar do crescimento notável da participação profissional feminina na segunda metade do século XX (CIG, 2008). Segundo Maria Abranches (2007), enquanto os significados do masculino se continuam a revelar como universais, tal não acontece com o feminino, sendo que as suas representações são limitadas e particulares, verificando-se a mobilidade dos atributos categoriais somente no sentido do masculino para o feminino. Neste sentido, a única subcategoria que mantém unicamente atributos femininos é a “de mulher-mãe” (Abranches, 2007, p. 40). Ou seja, as profissões e função laboral são predominantemente influenciadas pelo masculino (Vicente, 2013).
Tal acontece devido a um processo de segregação setorial no mercado de trabalho nacional (Ferreira, 1993; Silva, 2010), em que muitas instituições reproduzem as desigualdades que se definem através da criação de padrões normativos de género (Vicente, 2013). Neste sentido, permanece uma lógica institucional “genderizada” que reproduz relações desiguais entre os homens e as mulheres com base em estereótipos de género, fazendo com que os indivíduos inseridos nestas estruturas organizacionais sejam avaliados segundo critérios que obedecem a esses estereótipos (Vicente, 2013).
A dupla jornada – trabalho e vida doméstica - é representada como uma das desigualdades mais penosas para a mulher e utilizada, geralmente, para justificar as diferenças em contexto de trabalho, principalmente, na ordem de hierarquia e poder desigual (Romão, 2003).
As áreas de “Ciências, Tecnologias, Engenharias e Matemáticas” são um exemplo destas desigualdades a nível laboral, carregadas por uma forte componente masculina (cerca de 72%) e por uma singularidade da presença das mulheres (Saavedra, Taveira & Silva, 2010; Silva, 2010; CIG, 2009) que faz com que os estereótipos sejam consequentemente aumentados e as suas ações mais assinaláveis (Silva, 2010; Cook & Glass, 2014). De acordo com o estudo “Engenheiros em Portugal”, de 1999, de Maria Lurdes Rodrigues (citado em Silva, 2010), as engenharias têm-se tornado num espaço de oportunidades para as mulheres trabalharem num contexto tradicionalmente percecionado como masculino e, segundo Smith-Doerr (2004), verifica-se nas últimas décadas um aumento do número de mulheres que ingressam no ensino superior em diferentes áreas da engenharia. Todavia, além desta procura, segundo a metáfora do “oleoduto que pinga”, o número de mulheres nestas áreas tende a diminuir à mediada que se avança para o mercado de trabalho/carreira profissional (Saavedra, Taveira & Silva, 2010), uma vez que: muitas das empresas já possuem perfis e critérios de seleção e recrutamento para os diferentes cargos e, Smith-Doerr (2004), justifica este fenómeno com base na pressão que as mulheres sentem, quer ao nível de formação, quer no próprio trabalho.
Segundo Marjana Johansson e Martyna Sliwa (2014), o ambiente académico do Reino Unido carateriza-se por uma forte divisão de género, nomeadamente as mulheres recebem menores salários e têm menores perspetivas de carreira comparativamente aos homens. Em termos contratuais, de promoções, de condições de trabalho ou de remunerações, estas fazem parte de um grupo considerado como desfavorecido apesar das políticas de igualdade de oportunidades em vigor (Johansson & Sliwa, 2014). Estas políticas, que têm servido como “véus” protetores de discriminação de género e que tentam transparecer uma igualdade de oportunidades, escondem a realidade desigual entre homens e mulheres: estas últimas são associadas a determinado tipo de personalidade e percebidas como o género fraco perante a pressão dos horários e dos ritmos de trabalho autoritários. Mesmo em termos de aparência, as mulheres não coincidem com a autoapresentação e imagem séria de trabalho árduo que as academias querem transmitir para o exterior (Johansson & Sliwa, 2014).
Os dados mostram que as mulheres constituem um maior número percentual de diplomados, atingindo o valor de 60% em relação aos homens[1] (INE, 2001-2011). Está claro que o número reduzido de mulheres presentes em determinadas posições com um maior prestígio e em topos hierárquicos mais elevados não faz justiça ao valor assinalado, nem à expansão destas qualificações (Silva, 2010). De acordo com o estudo de Donna J. Nelson e Diana C. Rogers (2007), são poucas as mulheres com doutoramentos que concorrem a lugares de assistentes nas universidades e, provavelmente, a causa disto encontra-se no próprio ambiente pouco desejável para elas e num sentimento de não-pertença ao local, acabando por optarem por meios mais acolhedores e onde se sintam valorizadas. Por outro lado, há estudos que referem que os processos de recrutamento e seleção das mulheres na carreira académica são realizados a partir do princípio da “reprodução da dominação masculina” (Araújo, 2003, p. 119). As mulheres são selecionadas, nomeadamente para as “carreiras de base”, tendo em conta suposições acerca das suas capacidades de organização e das suas baixas aspirações de mobilidade profissional, o que leva à possibilidade de perpetuação do poder masculino nos níveis hierárquicos superiores (Araújo, 2003, p. 120).
Todas estas situações de desigualdade no contexto de trabalho complicam-se quando é considerada igualmente a etnicidade. Em Portugal, no final dos anos noventa, os fluxos de imigração aumentaram acentuadamente associados a uma procura de trabalho. Atualmente, este fenómeno é caraterizado por uma diversidade no fluxo migratório, sendo possível observar um conjunto de profissionais altamente qualificados que migram para Portugal.
Pedro Góis e José Marques (2014), no seu estudo acerca de processos de admissão e de integração de imigrantes altamente qualificados, apontam para uma ausência de investigações específicas sobre o referido tema e a ausência de dados estatísticos e de conceitos que possam definir estes fluxos migratórios de indivíduos qualificados a nível nacional. Os mesmos autores explicam que tal pode dever-se a uma diminuta percentagem de imigrantes altamente qualificados em Portugal no conjunto de toda a população imigrante: “numericamente [são] pouco significativos, em contraponto com uma imigração semiqualificada ou desqualificada representando os migrantes altamente qualificados menos de um quinto do total da população imigrante” (Góis e Marques, 2014, p. 35). No caso especifico das mulheres imigrantes, as investigações que fazem justiça às suas memórias e identidades em contextos profissionais e qualificados são ainda mais escassas (Miranda, 2009).
A mulher imigrante encontra maiores obstáculos face aos homens nos significados atribuídos pela nova sociedade (Amâncio, 2003; Miranda, 2009). As mulheres deparam-se com a já referida dupla discriminação ligada ao género – inserem-se no mercado feminino de trabalho que é por si próprio mais limitado do que o dos homens – e à situação do seu estatuto de imigrante (Tavares, Ferreira & Portugal, 1998). Um estudo realizado em 1999 pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), em cooperação com o Fórum dos Migrantes da União Europeia (FMUE), concluiu precisamente que, para além das dificuldades de acesso ao mercado de trabalho, a situação profissional dessas mulheres é também caraterizada pela precariedade de vínculos laborais.
Um estudo que tenta dar conta da realidade das mulheres imigrantes em posições qualificadas é o de Czarniawska e Sevón (2006). As autoras elaboraram um estudo resultante da observação de que várias das mulheres que obtiveram as primeiras posições de topo em universidades europeias eram imigrantes. Segundo as autoras tal também se justifica atentando às logicas de alteridade: o género e a etnia. A “dupla estranheza” provocada pela ligação entre o género e a etnicidade acaba por provocar uma anulação mútua. Tal permite que estas mulheres não sejam percebidas e colocadas na mesma categoria das mulheres autóctones, escapando, por isso, à sua condição de género; e, ainda, que não sejam simplesmente remetidas para a categoria de “imigrantes” (não se constituindo, por isso, como uma verdadeira “ameaça” ao emprego e ao sucesso dos seus pares masculinos autóctones) porque são, na verdade, mulheres. Todavia, esta situação, se facilita a sua progressão na carreira porque acabam por não ser aprisionadas numa categoria específica, está longe de garantir uma situação de conforto e uma estabilidade psicológica a estas mulheres. Segundo as autoras, estas acabam por sofrer uma dupla pressão no decorrer da sua construção identitária profissional: sobressai o facto das mulheres imigrantes académicas optarem por diferentes estratégias de legitimação da sua identidade, onde tentam sacrificar um ou outro aspeto da sua “estranheza”, isto é, a sua feminilidade ou a sua etnia.
Igualmente, Essers et al (2010) captam a construção identitária de mulheres empreendedoras de origem turca e muçulmanas e que residem na Holanda. As autoras mostram que estas mulheres constroem diferentes identidades e ultrapassam diferentes problemas culturais e étnicos ao fazerem uso de certas estratégias de sobrevivência como o tentarem alargar cautelosamente os limites permitidos pela sua cultura; e o tentarem resistir às expetativas de género, ao recusarem ser apenas donas de casa e estar totalmente à disposição da sua família (Essers et al, 2010).
É neste mesmo seguimento, de forma a caracterizar esta dupla condição discriminatória e perceber como a mulher imigrante é efeito de um fenómeno de “dupla estranheza” (Czarniawska & Sevón, 2006) - mulher e estrangeira – que este estudo procura analisar as desigualdades laborais do quotidiano deste grupo de mulheres. Para tal, metodologicamente, optou-se por uma metodologia qualitativa que tem por finalidade principal a construção de um esquema de inteligibilidade sobre um dado contexto empírico. O instrumento da metodologia não pode ser escolhido independentemente do conteúdo teórico da investigação e do seu objetivo: analisar as vivências das mulheres imigrantes em relação à sua vida profissional. Por isso, considera-se como melhor método de recolha de informações a entrevista semiestruturada.
Para efeitos de constituição do grupo de participantes, a presente investigação operacionalizou o conceito de mulheres imigrantes a trabalhar num contexto masculino/masculinizado da seguinte forma: cidadã nascida no estrangeiro, que adquiriu ou não nacionalidade portuguesa e que atua profissionalmente num contexto académico nacional nas áreas de matemática e engenharia.
De acordo com as participantes é possível relacionar a desigualdade de género com a hierarquia académica onde as mulheres referem encontrar o chamado efeito de “teto de vidro” (Catalyst, 2007; Santos, 2010; Cook & Glass, 2014) que bloqueia a sua ascensão profissional porque, mediante esta metáfora, as mulheres têm menos probabilidades de serem nomeadas para cargos de liderança do que os seus colegas homens (Cook & Glass, 2014). Indo mais longe, segundo uma das entrevistadas, “tudo [é] menor para elas” nestes contextos tipicamente masculinos (Ent. 12).
Deste modo, as participantes apontam uma maior facilidade na entrada na carreira de investigação mas uma maior dificuldade de progredir nas posições académicas ou de ocupar posições de destaque e de gestão dentro da academia, principalmente, em situações em que se acrescenta o “estrangeirismo” ao facto de ser mulher (“dupla estranheza”[2]): “Apesar de não me sentir discriminada como académica por ser mulher, a minha experiência mostra que as mulheres não têm tantas oportunidades de fazer uma carreira como os seus colegas homens.” (Ent. 2); “Quando são montadas comissões, por exemplo, só escolhem os homens, não que tivesse à espera que me chamassem porque sou estrangeira, mas não vejo outras mulheres lá” (Ent. 5); “[Ser] mulher e imigrante causaram que não ganhei nenhum concurso dos vários a que concorri, até que acabei por desistir…” (Ent. 8).
Ou seja, até aqui verificam-se os dois tipos de segregação laboral (Virgínia Ferreira, 2003): a horizontal, onde as investigadoras/académicas não têm o mesmo acesso aos contractos com empresas privadas e salários comparativamente aos colegas do sexo masculino; e a vertical, porque manifestam a sua dificuldade em assumir posições na hierarquia académica, onde os estereótipos de género funcionam como barreiras invisíveis para estas participantes (Catalyst, 2007).
É nestas situações, anteriormente referidas, que as mulheres expõem o facto de terem de ser mais agressivas e assertivas para conseguirem atingir elevadas posições hierárquicas: “Para atingir o [meu] objetivo, o trabalho duro e persistência são essenciais. Deve ficar claro desde o início que não será uma tarefa fácil, e uma vez que você aceitar esse facto, será mais fácil lidar com todos os desafios. Não espere muito apoio e compreensão dos outros, ou esperança de que ele vai ficar mais fácil, em vez disso você precisa confiar em si mesmo e ser determinado, e as coisas vão funcionar.” (Ent. 4). Ou mostrarem-se mais determinadas, competentes que os homens e silenciar os seus sentimentos de injustiça: “Acho que as mulheres devem ser espertas, se quiserem sobreviver nestes ambientes. Isso não significa que as mulheres devem usar alguns truques. Eu quero dizer, a mulher pensa que para sobreviver num contexto dominantemente masculino, geralmente, tem e costuma lutar e argumentar com os homens e, em frente às pessoas, sobre as injustiças. Na minha opinião, é importante que tudo comece a tornar-se claro e que se comece a preparar o “terreno” para a seguinte mulher não ter o mesmo tratamento injusto. Para fazê-lo, deve se ter e mostrar mais habilidades objetivamente em vez de apenas discutir com os homens. Assim, melhorar a si mesmo” (Ent. 10); “No entanto, em caso de estarmos num ambiente dominado por homens, eu acho que ela deveria ser melhor em determinada área do que seus colegas do sexo masculino, a fim de alcançar o mesmo status e estar preparado para a discriminação quando se trata de emprego, salário, autoridade e esforço” (Ent. 12).
Por outro lado, além da dificuldade de progressão académica, as participantes também assumem que se um dia essa progressão acontecer será derivada de um processo mais lento e nunca acontecerá tão rapidamente como acontece com os homens. Referem inclusive que na maior parte das situações são deixadas de fora e que “…os homens competem entre eles mesmos…” (Ent. 9).
Todavia, mesmo estando conscientes do duplo esforço a que são obrigadas para serem valorizadas de igual modo que o sexo masculino, as participantes tendem também a naturalizar e individualizar a discriminação de género ao afirmarem que não se sentem discriminadas. Na realidade, as mulheres acabam por justificar estas situações de discriminação com a sua “condição biológica” (Ent. 2). Isto é, a desigualdade de género é desvalorizada pelo facto de as participantes serem ou poderem ser “mães”, o que serve como uma plausível justificação e como um fator impeditivo e causador do efeito de “teto de vidro” (Catalyst, 2007; Santos, 2010; Cook & Glass, 2014): “Se não chegamos tão longe não é por discriminação no local de trabalho, mas porque realmente não temos oportunidade de nos emprenharmos tanto como os homens. Na minha opinião, isto deve-se à nossa própria condição de mulheres [mães].” (Ent. 2); “O preconceito contra a mulher pode ter diferentes conotações. O simples facto de sermos mulheres não pode ser um obstáculo, mas quando somos uma mulher com obrigações familiares - uma mãe - realmente pode fazer as pessoas pensarem que somos menos orientadas para o trabalho. Geralmente, não há verdade nisso. Mas o valor do trabalho para a mulher torna-se muito mais baixo, em comparação com o de um homem, mesmo que o homem também tenha obrigações familiares – ser pai” (Ent. 4); “Considero que ser mulher já não é muito um problema, apesar de ser mãe certamente afeta todos os aspetos da vida profissional. Para as outras pessoas, ter obrigações familiares significa que o trabalho não é uma prioridade na minha vida, nem que me posso dedicar totalmente a ele. De alguma forma, aos olhos dos outros, esta situação de ser mãe é percebida como se o meu potencial de trabalho fosse menor do que o das outras pessoas e que eu não possa alcançar tanto ou mais como elas” (Ent. 5).
Está claro que “o preconceito contra a mulher pode ter diferentes conotações”, como refere a participante da entrevista 4, e um deles é o facto de serem ou poderem ser mães. A maternidade surge assim como legitimadora da desigualdade de género. Os homens parecem figuras ausentes desta reflexão sobre as responsabilidades familiares e quando presentes, o seu papel e obrigações parecem não ser questionados. A responsabilidade relativa à discriminação passa assim a ser das próprias mulheres, ou seja, uma responsabilidade individual que iliba a sociedade e os homens enquanto agentes de discriminação (Amâncio, 2003).
Este grupo de mulheres parece, assim, estar consciente das “micro desigualdades” (Araújo, 2003) que sofrem no seu dia-a-dia de trabalho e de que estes contextos valorizam sempre caraterísticas do género masculino, criando a persistência de práticas invisíveis que institucionalizam a dominação dos homens sobre as mulheres (Page, Bailey & Delinder, 2009; Loureiro & Cabral, 2008). Por sua vez, a desvalorização da discriminação de género acaba por ser uma consequência da própria sociedade, onde o “género forte” continua a manter a superioridade numérica nas posições de topo e as mulheres continuam sempre como as “segundas melhores” (Loureiro & Cardoso, 2008, p. 224), mesmo que o seu esforço seja o dobro.
As participantes acabam por aceitar as regras masculinizadas dos seus quotidianos e criam diferentes estratégias, de forma a superar a sua condição de género enquanto mulheres: mentalizam-se desde o início que não será de todo uma tarefa fácil ao trabalharem nestes contextos e que devem encarar tudo com trabalho duro, persistência e acreditar em pleno nas suas capacidades porque mais ninguém o fará (Ent. 4); tentam criar boas relações com todos os seus colegas de trabalho independentemente do posto hierárquico em que estão alocados (Ent. 9); tentam pensar a longo prazo e criar um terreno mais maleável para as próximas mulheres nesta situação, mantendo a calma, mostrando as suas habilidades e não entrando em discussões com o sexo oposto (Ent. 10); e, por fim, tentam fazer sempre mais e melhor que os seus colegas homens (Ent. 12).
São reconhecidos pelas participantes ainda outros momentos de discriminação de género, como acontece quando as mulheres são masculinizadas no seu contexto de trabalho: “É mulher, 'mas' vale por dois homens” (Ent. 14). Está-se perante um tipo de discriminação disfarçada por um elogio que enfatiza o masculino como (dupla) norma. Consoante os estudos de Ferreira (2003, 2009), quando uma mulher se consegue destacar, a expetativa é sempre maior daquela que se teria com um homem porque esta pertence a um género que a remete para uma situação de desvalorização imediata. As participantes referem, ainda, que nos seus contextos de trabalho, um erro cometido por um homem é imediatamente esquecido: “Quando um homem erra, ele é perdoado. Se uma mulher comete o mesmo erro, ela é esconjurada” (Ent. 13). Os homens são antes de tudo indivíduos e não seres genderizados. Por outro lado, o comportamento das participantes torna-se saliente porque são mulheres, ou seja, as suas ações são mais assinaláveis (Silva, 2010).
Outra situação deste tipo de discriminação de género e presente na interação com os colegas do sexo masculino relaciona-se com a necessidade que os homens têm de se comportarem adequadamente em frente às suas colegas, exagerando o instinto protetor e o cavalheirismo, e colocando-as numa posição de “fragilidade” associada ao género feminino: “Talvez um tratamento diferente, mas no bom sentido… acho eu, não sei… a gentileza a mais ou os ‘faz favor’ a mais, o não dizer asneiras ou se sentiram extremamente incomodados com tal (…) provoca um distanciamento” (Ent. 5).
É importante referir que, dentro do mundo académico, também são apontadas situações de desconforto por parte dos próprios alunos, em que num primeiro patamar verifica-se uma não-aceitação por parte dos alunos do sexo masculino e em segundo lugar uma insegurança por parte dos alunos do sexo feminino: “(…) já o mesmo não acontecia relativamente aos alunos, sobretudo aos de Engenharia, que não viam com bons olhos receberem aulas de Matemática de uma mulher estrangeira. Aqui não sei dizer qual o fator que contava mais: o ser mulher ou o ser estrangeira…”(Ent. 2); “Tenho reparado que as raparigas, em contextos masculinos, evitam geralmente chamar a atenção e evitam questionar, ou seja, evitam colocar questões, dúvidas aos professores. Os colegas masculinos são muito mais atrevidos, com menos sentido do ridículo e conseguem chegar, às vezes, mais longe, porque colocaram no momento certo a questão certa… basicamente, colocando centenas de questões erradas antes...” (Ent. 3).
Atente-se que na primeira citação, o género aparece indissociável da etnicidade: “mulher estrangeira”, concorrendo ambas as condições identitárias para a “outridade” da entrevistada 2. Este excerto serve ainda de mote para introduzirmos a etnicidade.
A análise de conteúdo das entrevistas apresenta a barreira comunicacional como principal constrangimento do dia-a-dia de trabalho destas mulheres, nomeadamente, surgem barreiras no trabalho e uma dificuldade acrescida em estabelecer relações profissionais com os seus colegas: “Vindo da Europa do sudeste, não há um bom conhecimento do idioma Português – [ambiente de trabalho em Inglês] – a maioria das pessoas em cargos administrativos presumem que eu sou uma imigrante com baixas qualificações/baixa escolaridade. Eles ficam irritados e, por vezes, não estão realmente dispostos a explicar lentamente se eu não entender as explicações em primeiro lugar.” (Ent. 4); “Os meus colegas falam Português nas discussões de trabalho, mesmo em algumas obras sérias que devemos todos estar a par. Eu sinto-me de parte e às vezes acho que eles fazem isso de propósito. Há sempre uma preferência para o Português quando há alguma limitação no orçamento para o material, lugar (…) por vezes, é difícil participar em decisões” (Ent. 14);
Esta barreira comunicacional, só por si é suficiente para criar situações de desconforto ou fazer com que as participantes não consigam dar a sua opinião e discutir assuntos em tomadas de decisões (estes falados somente em português). Aqui, mais uma vez, temos a permanência da dificuldade de progressão académica, agravando-se quando a variável étnica lhe é associada.
Na verdade, consoante os testemunhos das participantes, parece que a condição de estrangeira acentua ou supera a discriminação de género. De uma forma geral, a maior parte das imigrantes aponta que o facto de serem estrangeiras acaba por pesar mais e causar um maior impacto num contexto masculinizado do que o fato de serem mulheres: “Possivelmente ser imigrante pesa mais do que ser mulher. Em termos de contratação, é provável que um país tenha preferência pelos seus próprios cidadãos” (Ent. 1); “Em Portugal, devido à situação económica atual, ser imigrante realmente diminui as minhas oportunidades de encontrar um bom emprego, pois, até os meus colegas portugueses lutam por um bom emprego. Não saber perfeitamente a língua portuguesa torna-se realmente um grande obstáculo todos os dias, principalmente na vida profissional.” (Ent. 4); “A etnia (…) Os portugueses não conseguem distinguir diferentes culturas asiáticas, para eles se veem alguém com os olhos em bico são logo chineses (…) A maioria dos chineses que têm mais amigos dentro da comunidade chinesa é porque falam mal a língua portuguesa (que é difícil de assimilar) e por isso refugiam-se na “sua” comunidade” (Ent. 13); “Eu não sinto diferença entre ser homem e mulher aqui, mas como imigrante já posso dizer que há algumas diferenças entre alguns grupos. Na verdade, há grupos que são muito recetivos e acolhedores para as pessoas internacionais e há outros que não sabem o que é a cultura e como se comportarem quando você tem colegas de outros países” (Ent. 14).
A este nível, as investigações referem que, quer em género ou etnia, os membros destes grupos minoritários, tendem a sofrer injustiças de uma forma subtil (Barbosa, 2003), por exemplo, micro desigualdades: como a subvalorização profissional e a intimidação intelectual ao género feminino (Araújo, 2003). É neste sentido que as evidências empíricas obtidas neste trabalho permitem afirmar que apesar do crescente ingresso das mulheres em contextos tipicamente masculinos (Silva, 2010; Smith-Doerr, 2004), os papéis e os estatutos organizacionais continuam a ser marcados diferenciadamente pelo género e, por isso, certas posições continuam a ser consideradas mais masculinas (ou femininas) que outras, acabando por ocorrer várias situações de discriminação. Esta realidade está associada a um mundo socialmente patriarcal onde os homens (brancos) ocupam posições de chefia e domínio sobre as mulheres e as minorias em geral (Sheppard, 1994 in Loureiro & Cardoso, 2008; Silva, 2010).
Afirma-se que, para além de todo o discurso de celebração da igualdade entre os homens e as mulheres, existem evidências que sustentam a conjetura de que as mudanças no mundo laboral ainda não atingiram um nível igualitário de oportunidades entre homens e mulheres e que as desigualdades agravam-se quando é introduzida a variável étnica, como foi analisado ao longo deste estudo. Todavia, a análise qualitativa desenvolvida na presente investigação aponta ser possível para as mulheres trabalharem num meio laboral tipicamente masculino, embora, para tal, estas sejam obrigadas a escolher diferentes estratégias de adaptação (ou até de sobrevivência). Claramente, este grupo de imigrantes atravessa dificuldades na sua atividade profissional e extraprofissional que devem ser reconhecidas. Daí ser pertinente fomentar a investigação em torno da imigração feminina num domínio de trabalho qualificado.
A investigação em causa e as suas conclusões permitem uma reflexão sobre os possíveis contributos para o mundo prático das instituições académicas no âmbito da gestão de recursos humanos. Neste sentido, parece essencial manter a opinião do “senso-comum” informada e sensibilizada para estas “micro desigualdades” (Araújo, 2003) sofridas pelas mulheres imigrantes investigadoras/académicas e que passam despercebidas no nosso dia-a-dia. Para o efeito, é necessário mudar mentalidades num futuro próximo. Esta mudança não deve ser vista como uma responsabilidade individual porque, tal como Loureiro e Cabral (2008, p. 228) referem “esta missão apresenta-se difícil sem a ajuda dos organismos oficiais”. Virgínia Ferreira (1999, p. 218) acentua: “não podemos esperar que a superação das desigualdades se produza exclusivamente ao nível [micro] e das interações entre mulheres e homens, já que a sociedade se estrutura em torno do princípio da desigualdade ao nível do funcionamento das instituições e da organização da vida social”. A sociedade tem assim um papel fundamental no que toca a desigualdades entre os géneros e, acrescenta-se, desigualdades associadas à etnicidade.
A gestão da diversidade está diretamente associada ao conceito de gestão de recursos humanos, em que ambas enfatizam a individualidade de cada trabalhador (Cabral-Cardoso, 2003; Prasad & Mills, 1997). Esta ligação faz com que a abordagem da gestão da diversidade possa ser definida como uma espécie de compromisso, ordenado e sistemático, de recrutamento, retensão e promoção de uma mistura heterogénea da força de trabalho, capaz de desenvolver o potencial máximo de cada indivíduo (Prasad & Mills, 1997). Deste modo, os gestores não se restringem a procurar e a apontar as desigualdades, mas sim, a enfrentá-las como um problema, transformando a diversidade da força de trabalho em oportunidades claras e conducentes de uma vantagem competitiva face às outras organizações (Cabral-Cardoso, 2003). Todavia, algumas críticas têm sido levantadas e apontadas ao modelo de gestão de recursos humanos, no sentido em que continua a assumir o trabalhador ideal como sendo o do género masculino (Barbosa, 2003). Consequentemente, já que os processos de gestão são pré-determinados e estabelecidos como neutros em termos de género, provoca na prática desigualdades inquestionáveis (Cabral-Cardoso, 2003).
No âmbito da gestão de recursos humanos e com base no trabalho de investigação desenvolvido, sugere-se que se (re)pense e (re)defina as políticas de igualdade de oportunidades, tendo em conta as especificidades dos grupos minoritários, as suas experiências de vida e os seus contextos, neste caso, das mulheres imigrantes. De certa forma, a existência de políticas formais familiarizadas como a gestão da diversidade não são suficientes para assegurar avanços nesta matéria, porque mesmo sendo utilizados procedimentos mais formalizados, as práticas discriminatórias continuam a persistir embora estejam encobertas por uma “retórica de objetividade e cientificidade” (Cardoso-Cabral, 2003, p. 58). A existência de uma política de igualdade de oportunidades é utilizada, muitas vezes, como uma desculpa para dispensar a reflexão ou discussão de atos discriminatórios a um nível micro (Cardoso-Cabral, 2003).
Ao nível do género, reconhece-se como de crucial importância para uma efetiva política de igualdade nas instituições académicas, a implementação de planos de ação a todos os níveis, desde o reconhecimento da igualdade de género nos documentos estratégicos das instituições, a todo um outro conjunto de fatores-chave da gestão que devem compreender todos os componentes da sua estrutura organizativa (CIG, 2008): informação e comunicação; processos de recrutamento e seleção; acesso à formação; progressão na carreira; sistemas de avaliação de desempenho; sistemas remunerativos; e políticas de conciliação entre vida profissional, familiar e pessoal. A este último nível é preciso também repensar os espaços privado-público e promover uma maior igualdade entre homens e mulheres na partilha das responsabilidades domésticas e familiares: “sem igualdade fora do local de trabalho será muito difícil falar-se de igualdade no local de trabalho” (Loureiro & Cardoso, 2008, p. 228).
É mais que importante, nos dias de hoje, aceitar novas dinâmicas familiares e diferentes valores e enfraquecer as visões tradicionalistas em torno da família, para que os papéis sociais dos homens e mulheres possam ultrapassar uma organização familiar tradicionalista (Silva, 2010). Segundo Santos (2010), existe uma literatura crescente acerca de “políticas amigas da família” ou programas de ajustamento do trabalho com a vida privada implementadas pelas organizações, Contudo, alguns estudos evidenciam várias limitações inerentes a estas políticas de conciliação, nomeadamente, o facto de serem programadas tendo em conta grupos específicos de trabalhadores (somente mulheres com crianças pequenas) e de não questionarem os valores tradicionais implementados pela sociedade como a ideia do “trabalhador ideal” ser um homem. É importante que estas políticas existam, mas de forma moderada e pensada consoante as necessidades de cada colaborador.
Ao nível étnico e olhando para o grupo das participantes, o processo de adaptação não se torna tão claro. Segundo José Carlos Marques e Pedro Góis (2011), como já explanado, a migração laboral é assumidamente masculina, seguindo-lhe uma reunificação familiar feminina. Torna-se portanto necessário, atualmente, adequar as políticas migratórias do modelo tradicional de reunificação familiar em vez de esperar que a realidade se adeque às políticas existentes. Ou seja, adequar as políticas às particularidades da diversidade migratória e das imigrantes qualificadas, apoiando o seu potencial e o seu contributo a nível nacional: “a importância de compreendermos a diversidade existente na diversidade” (Marques e Góis, 2011, p. 90). Especificamente, é esperado que, invés do conjunto de planos nacionais específicos onde as medidas destinadas às mulheres imigrantes constituem apenas subpartes de documentos (Marques e Góis, 2011), importa construir uma cultura de igualdade e de não-discriminação que se reflita na prática, não deixando de parte algumas caraterísticas importantes das imigrantes: como o facto de serem mulheres qualificadas (onde há uma escassez de investigações, como foi explicado anteriormente).
Outro ponto que torna o processo de adaptação não tão acessível relaciona-se com a barreira comunicacional e parece estar relacionada com a falta de domínio da língua portuguesa. Como tal, sugere-se uma operacionalização adequada dos processos de integração e socialização formalmente definidos, tendo em conta um esforço de inclusão através da língua. Com este fim, são recomendadas formações de aprendizagem da língua inglesa por parte de todos os membros da academia interessados em fazê-lo, focadas nos termos técnicos usados nas diversas área cientificas e/ou formações de sensibilização para os problemas das colegas imigrantes. Ou então, desenvolver seminários ou reuniões mensais entre colegas dos mesmos departamentos e universidades de forma a haver uma partilha de opiniões e experiências. Indo mais longe, tentar trazer para estes seminários/grupos de discussão várias experiências de sucesso ou insucesso dos processos de integração, vividos e contados por membros de várias universidades, para com estes relatos ser possível chegar aos resultados das políticas implementadas nas várias universidades. Por outro lado, considera-se também importante desenvolver e fortalecer os programas específicos de formação na língua portuguesa direcionados à população imigrante.
Uma outra proposta é a implementação de programas de coaching que induz os colaboradores a executarem o seu trabalho da melhor forma possível, simplesmente ajudando e acreditando neles. O coaching proporciona um feedback verdadeiro e diálogo colaborativo com o trabalhador. Deste modo, as mulheres imigrantes podiam partilhar as suas experiências, encontrando respostas por si mesmas com fim de alcançar os seus objetivos e resolver os “seus vazios” profissionais, e, com isto, esperar que haja uma maior flexibilidade e capacidade de adaptação.
Outra recomendação que parece viável passa por tentar aproximar todos os colegas de trabalho através de atividades de lazer que englobem ambos os sexos, como a realização de eventos festivos. Atividades e eventos que possam contar com os próprios alunos e funcionários que são, cada vez mais, uma população heterogénea. Ficou claro, perante o testemunho das participantes, que um bom ambiente de trabalho é um passo para uma boa integração.
De forma a concluir o presente artigo, durante o seu processo, acabou por ocorrer uma situação deveras insólita que ilustra como o estigma associado a condição de imigrante continua a ser muito forte. Por lapso, uma das mensagens de apresentação do estudo e solicitação de participação seguiu para um endereço de correio eletrónico indevido, tendo sido enviado para uma professora de nacionalidade portuguesa. Tal equívoco provocou junto da docente um enorme desconforto por ter sido percebida como integrada na categoria de “imigrante”. Após uma explicação do lapso ocorrido e de novamente se ter reforçado a natureza “benigna” da investigação em causa, a professora em questão torna questionar a investigação. Mais especificamente, a académica expressou o seu desconforto quanto a esta categoria da seguinte forma: “(…) eu formei-me em 1985 e sou membro da Ordem dos Engenheiros desde os meados dos anos 80. Sou uma participante bastante ativa nos eventos e na vida da Ordem. Nunca vi nenhum imigrante na Ordem. Será que há? Nunca vi no meio universitário nenhum "verdadeiro" imigrante na carreira académica. Conheço imigrantes (verdadeiros imigrantes) a trabalharem nas universidades em França, Reino Unido, EUA, etc. Em Portugal não conheço nenhum. Muito menos mulheres-imigrantes. Ainda menos mulheres-imigrantes e a trabalharem nas áreas ditas "masculinas". Não será ficção científica?”.
Neste excerto é visível o desconforto da docente com a categoria de imigrante que ela distancia daquilo que é o seu trajeto pessoal e profissional no contexto nacional. Dir-se-ia que ela duvida que uma mulher imigrante dificilmente teria o mesmo percurso profissional que ela própria por causa dessa sua situação identitária que a parece diminuir e desvalorizar, segundo a docente. Este é assim um exemplo das dificuldades encontradas no estudo deste tema, sendo primordial a relutância e desconfiança das participantes relativamente à presente investigação.
[1]Segundo dados do INE (2001-2011) as maiores disparidades em termos educacionais dizem respeito às áreas de educação, ciências sociais, comércio, direito, saúde e proteção social, onde as mulheres diplomadas lideram com uma acentuada diferença, por seu lado, a engenharia, indústrias transformadoras e construção mostram como figura dominante de diplomados o homem.
[2]Expressão utilizada no artigo “The Thin End of the Wedge: Foreign Women Professors as Double Strangers in Academia” de Czarniawska, Barbara & Sévon, Guje (2006).