08/04/2019

Reflexões sobre arte e democracia: sujeito à grafiti ou pichação?

O sujeito está diante de uma folha ou de um muro.
Espaços em branco como sinônimo de vazio? Há barulho de polícia, lata. Corre ou permanece em silêncio?

Esse silêncio que precede o ato conta: a intencionalidade que antecede o que será registrado, o diálogo interno de um indivíduo pronto para se expor e preencher espaços, estão ali. Mas se o espaço a ser preenchido for o humano? E se no silêncio que precede a criação, existir um acordo mútuo que determina o que será dito?

Os desenhos mais antigos que temos registro datam de cerca de trinta e seis mil anos e estão na Caverna de Chauvet, na França. Em uma mesma caverna, cinco milênios separam registros visuais diferentes em um mesmo local e a primeira representação de um corpo humano feminino, esboçado em uma estalaquitite.

Sabe-se que os desenhos encontrados demonstravam a necessidade do homem em registrar o que sentia, o que vivia. Que eram uma tentativa de controlar sua relação com o entorno e, ao mesmo tempo, manifestar seu desenvolvimento intelectual.

Há cerca de dois anos, viajava com a família pela França e minha sogra me convidou para assistir um ballet na Ópera de Paris. Para um calvo branco com sobrepeso eurocêntrico, seria o luxo da ostentação cultural.

Um edifício lindo, historicamente palco de obras de arte extremas da cultura de nosso tempo. Selfies para lá, filas educadas para cá e, ao sentarmos quase que ao centro da grande platéia, olho para o teto e perco a respiração por três ou quatro segundos.

Sim, estava com minha sogra vendo um ballet em Paris, mas a quebra do estéreotipo não era essa: Clement Greenberg, um dos maiores críticos de arte do pós-guerra, diria que estética doméstica é valorizar o que se tem em casa.

Mesmo assim, ao olhar para o teto, engasguei. Era torto, ingênuo, relapso, fora de lugar, algo quase marginal. Igual ao mau tratado ensino de artes no Brasil, resignado à aulas no ensino fundamental, rodando sem conexão com as demais áreas: no topo da Ópera de Paris, estava uma pintura de Marc Chagall, pintor franco-russo judeu, contestado por pintar os contrastes sociais e religiosos. A obra, realizada em 1964, foi muito criticada na época e cobria um trabalho clássico anterior, de Jules Eugene Lenepveu.    

Todos os adjetivos acima, referentes a percepção da obra, demonstraram e descreveram minha ignorância quanto à história do devido trabalho e do artista. Não entrarei em detalhes, pois minha intenção é somente provocar a reflexão de quem chegou até aqui.    

É isso que acontece quando estamos diante de uma interface: elas são diálogos entre sistemas. Se não dominamos os códigos, interpretamos do nosso jeito o mundo invisível que nos cerca. Um simples rabisco na parede esconde toda uma rede de relações e, cada um dentro do seu repertório, a interpreta e idealiza.

Esta é uma das funções do design e da arte na atualidade: criar narrativas e interfaces em nossas relações e trocas com o mundo. Para o bem e para o mal. Em muros e prateleiras. No real e no virtual.

Voltemos agora ao momento do sujeito em frente ao muro. Ele não quer saber dos códigos, da Ópera de Paris, de Chagal ou falar sobre conceitos de Design. Ele é resultado de uma rede invisível e exprimido pela saturação informacional das grandes cidades. Então não mais silencioso, grita!

Alguns reais depositados na lata e mentiras podem ser pichadas. Mas a verdade é que julgamos rapidamente e nossa ignorância também acontece olhando para o sem teto, para baixo do umbigo. E admitir essa manifestação de arte sem que possamos compreender o vocabulário, dói.  

Quando Marcel Duchamp deslocou um mictório (“A Fonte”) para dentro de um museu, queria questionar esse lugar de fala. Queria questionar a arte aceita somente dentro de um cenário mainstream.

A arte-lotação no ônibus cria o stress e o abuso. A arte-multidão de carros cria o congestionamento e o xingamento móvel. Nossos excessos trazem dores, incômodos, berros e então a arte se transforma na interface entre os invisíveis e os letrados. O muro se torna metáfora de democracia, de reunião de condomínio, e aceita a diversidade de fontes.  

Que consigamos educar sujeitos para que seus gritos se transformem em narrativas construtivas e que, no momento da criação, tenham menos dores a gritar, menos muros a quebrar. E então que a tipografia torta e subjulgada, se transforme em mensagem – assim, quem sabe, um dia ele também possa convidar alguém para ir a um museu.

*Rafael Augusto Camargo é mestre em Educação e professor da Escola de Comunicação e Artes da Pontíficia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

 

Assine

Assine gratuitamente nossa revista e receba por email as novidades semanais.

×
Assine

Está com alguma dúvida? Quer fazer alguma sugestão para nós? Então, fale conosco pelo formulário abaixo.

×