26/09/2016

Resenha da obra: ‘O sobrinho de Rameau’ de Denis Diderot

Denis Diderot nasceu na cidade de Langres em 5 de outubro de 1713. Seus estudos são iniciados no Colégio Jesuíta de Langres no ano de 1723, recebendo daquela ordenação educação exemplar[1]. Em 1728 dirige-se a capital Paris e passa a frequentar o Liceu Sant-Louis e em 1732, recebe o grau de mestre em artes pela Universidade de Paris[2]. Na década de 40 do século XVIII, dá início a carreira de tradutor, mas essa condição não lhe garante  sobrevivência digna. Casa-se em 1743. Começa a trabalhar na obra ‘A Enciclopédia’ e em paralelo, passa a confeccionar outras obras, como ‘Pensamentos Filosóficos’, obra de 1746. Na mesma década, propriamente no ano de 1749, por estar dentre os escritores que, na concepção dos poderes franceses ‘escreviam sátiras’, foi detido e preso[3]. Quando solto, retoma a ‘Enciclopédia’, mas a obra tem críticas e sua impressão é revogada em 1759, pois poderia “destruir a religião e inspirar a independência dos povos[4]”. No mais, a obra “negava implicitamente que o ensino religioso fosse uma fonte válida de informação factual sobre o mundo, e negava assim qualquer autoridade intelectual à Bíblia ou à Igreja[5]”. Depois de muitos percalços, o último volume da obra é entregue em 1766, chegando finalmente a devida conclusão “o maior empreendimento intelectual e editorial do século XVIII[6]”. Embora a voluptuosidade da obra, esta traria fortuna somente aos editores, como Diderot mesmo reconhece: “Não é estranho que eu tenha trabalhado trinta anos para os sócios da Enciclopédia, que minha vida se tenha passado, que a eles restem dois milhões e que eu não tenha sequer um soldo? A dar-lhes ouvido, devo estar muito feliz por ter vivido[7]”. Em 1784, enquanto via o seu mundo envelhecer, Diderot teve um escarro de sangue e adoece. Falece em Paris em 31 de julho daquele mesmo ano. Dois dias antes de morrer, comenta com os operários que montavam sua cama: “Meus caros, vocês estão se dando muito trabalho para um móvel que não me servirá quatro dias[8]

Dentre tantas obras importantes, Denis Diderot publicaria em 1762 “O Sobrinho de Rameau”, obra fictícia que representaria um diálogo filosófico entre o próprio Diderot (Eu) e o sobrinho do afamado músico Jean-François Rameau (Ele), obra tema deste resumo. Escrito em forma de diálogo, Diderot já dá o seu recado no próprio título da obra. Ora, se nome é conceito, então ‘Ele’ não o teria. Seria apenas “O Sobrinho” de alguém. No diálogo entre ‘Ele’ e ‘Eu’, Diderot vai transcorrendo sobre educação, genialidade, intelectualidade, dinheiro, status social, enfim, sobre a sociedade e o modo de viver em que o próprio autor estava inserido. É uma sátira e uma crítica de seu ambiente social, uma crítica racional à própria racionalidade da época.

Já no início do texto, ‘Eu’ faz alusão a ‘Ele’ como uma pessoa excêntrica, extravagante, “um misto de altivez e de baixeza, de bom senso e desatino”[9]. Percebe-se no transcurso do diálogo, um ‘Ele’ um tanto inconseqüente, e um ‘Eu’ com o propósito de moralizar o diálogo e ensinar bons costumes. Nas entrelinhas, vê-se claramente que o boêmio sem teto e que vive de pequenos golpes faz parte da própria essência de Diderot. Embora sem rumo, ‘Ele’ é um grande conhecedor de música, artes e da própria filosofia. A rapidez do texto passa a sensação nítida ao leitor de que o campo do vivido é o campo das mudanças e as coisas vão se transformando pela própria coisa.

Existem alguns momentos notáveis do diálogo entre ‘Eu’ e ‘Ele’ que valem algumas reflexões, pois põem em cheque a racionalidade e os costumes.

Neste sentido, quando comenta a parcialidade das leis, ‘Ele’ entoa que “há dois tipos de leis; umas absolutamente equânimes e gerais, outras estranhas, cuja sanção provém apenas da necessidade ou da cegueira das circunstâncias[10]”. “Ele” também diz que a falácia de ser bom cidadão e servir a pátria é pura vaidade, pois naquela sociedade não havia mais pátria e sim, “apenas tiranos e escravos”. Vaidade também seria o desejo dos filósofos de servir aos amigos, pois, “quem tem amigos?[11]” E ainda, sobre ter uma posição na sociedade, ‘Ele’ enfatiza que também é certo tipo de vaidade, pois o “que importa que se tenha ou não uma posição, desde que seja rico, pois só se arranja uma posição para isso[12].

‘Ele’ faz questão de entoar por todo o texto que a sociedade é hipócrita e moralista pois ela apregoa honestidade e bons costumes, mas, por detrás das portas, pratica misérias, e julga o miserável, o podre e aquele que vive de pequenos golpes, mas, os pratica também na surdina e na calada da noite. No mais, estes não sabem as dores de se viver na pobreza, pois “a voz da consciência e da honra é muito fraca quando as tripas gritam[13]. Assim, ‘Ele’ desmantela o sentido de honestidade e felicidade que ‘Eu’ carrega como bagagem racional, e complementa salientando que sempre esbarra pela sociedade com “uma infinidade de gente honesta que não é feliz, e uma infinidade de gente feliz que não é honesta[14].

‘Ele’ arremata o diálogo quando explica qual o motivo de viver uma vida incerta, sem os padrões que a sociedade espera dele, e muitas vezes se passando por ridículo, pois “para uma vez que se deve evitar o ridículo, felizmente há cem outras em que é preciso lançar-se nele[15] e é exatamente por este motivo que prefere se passar por bufão a ser um sujeito considerado sábio, pois “durante muito tempo houve o título de louco do rei. Que eu saiba, nunca houve o título de sábio do rei” e nesse momento, ‘Ele’ coloca ‘Eu’ em cheque-mate quando ousa dizer que “sou o louco de Bertin e de muitos outros, o vosso talvez, neste momento. Ou quem sabe se vós sois o meu?”

Aqui claramente Diderot questiona a posição dos dois dialogantes. Quem é louco afinal? Aquele que se faz de louco e vive a vida com a sua própria concepção de felicidade, ou aquele que se acha sábio, mas que, vivendo a concepção de felicidade dos outros, possui uma vida medíocre? Pois, diz ‘Ele’:

lembrai-vos de que, num assunto ao controvertido como o dos costumes, nada há que seja absoluta, essencial e geralmente verdadeiro ou falso, mas que se deve ser aquilo que o interesse deseja que sejamos: bom ou mau, sábio ou louco, decente ou ridículo, honesto ou vicioso. Se, por acaso, a virtude tivesse conduzido à fortuna, eu teria sido virtuoso ou simulado a virtude como um outro qualquer. Quiseram-me ridículo, assim me fiz. Quanto aos vícios, a despesa ficou por conta da natureza. Quando digo vicioso, digo-o apenas para falar a vossa língua, pois, se viéssemos a nos explicar, poderia ocorrer que chamásseis vício o que chamo virtude, e virtude o que chamo vício[16]

Com estas palavras, com sua sátira, Diderot subverte totalmente os valores sociais de sua época e devasta por completo o racionalismo. Sem dúvida, como em um passe de mágica, o ceticismo e a amoralidade do dialogante ‘Ele’ conquista o leitor e o faz pensar se este mundo construído, recortado, e repleto de moralidade, religiosidade e racionalidade é realmente o mundo em que se quer viver.

Diderot consegue com seu texto o improvável. Consegue debater com ele mesmo expondo ao mundo uma alma em conflito com o seu tempo, afinal, os dois personagens são duas facetas de um mesmo ser.

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Referências:

DIDEROT, Denis. O sobrinho de Rameau (Textos Escolhidos). Tradução de Marilena de Souza Chauí. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

GUINSBURG, Jacó. Dennis Diderot: o espírito das ‘luzes’. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

MAGGE, Bryan. História da Filosofia. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

 


[1] MAGGE, 1999, p.124.

[2] GUINSBURG, 2001, p.13.

[3] GUINSBURG, 2001, p.21.

[4] GUINSBURG, 2001, p.26.

[5] MAGGE, 1999, p.124.                                        

[6] GUINSBURG, 2001, p.27.

[7] GUINSBURG, 2001, p.28.

[8] GUINSBURG, 2001, p.42.

[9] DIDEROT, 1979, p.41.

[10] DIDEROT, 1979, p.44.

[11] DIDEROT, 1979, p.55.

[12] DIDEROT, 1979, p.55.

[13] DIDEROT, 1979, p.54.

[14] DIDEROT, 1979, p.56.

[15] DIDEROT, 1979, p.63.

[16] DIDEROT, 1979, p.63/4.

 

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