26/07/2012

Ser criança, ser adolescente delinquente: contextualização histórica e legislativa

Ser criança, ser adolescente delinquente: contextualização histórica e legislativa

 

Alini Rosário

Larissa Franco

Solange Prado

 

Resumo: Em meio à discussão pública e governamental sobre o aumento da idade para penalização de menores infratores, o ensaio que se apresenta visa apresentar e discutir sobre as concepções de crianças e adolescentes ao longo da história e as mutações das penalizações aos considerados infratores.

Palavras-chave: Crianças e adolescentes; Delinquência; penalização

 

Há muito assiste-se a várias mudanças na concepção de infância e adolescência. Várias são as teses que mostram as mutações destas concepções tal como a concebemos na atualidade. Segundo Philippe Ariès (1981), durante a Idade Média, esses seres eram vistos como adultos em miniaturas e somente a partir do século XVI, uma concepção de infância, centrada na inocência e na fragilidade, começa a ser esboçada. Colin Heywood, citado por Frota (2007), discorda das afirmações de Ariès, demonstrando em suas pesquisas que havia sim uma distinção entre crianças e adultos durante a Idade Média, uma vez que a Igreja, nesse período,  já se preocupava com a educação das crianças.

Tirante às discussões históricas, o fato é que as concepções dessas fases influenciaram sobremaneira o ordenamento jurídico brasileiro no que tange à responsabilização penal juvenil. Nesta perspectiva, o trabalho, que ora se apresenta buscará, com base no texto de Bruno Queiroz (2011) mostrar as mudanças conceituais de criança e adolescência que marcaram a legislação jurídica no Brasil.

Na condição de colônia de Portugal, a legislação penal que no Brasil vigorava era a mesma da metrópole. Após a União Ibérica, o rei Filipe II da Espanha, como monarca das duas Coroas, ordenou que houvesse uma compilação jurídica, reformando as Ordenações Manuelinas tanto em Portugal quanto nas colônias d’além mar.

Intituladas Ordenações Filipinas, o novo código, formado por cinco livros, foi sancionado por Filipe II no ano de 1603 e, esteve em vigor no Brasil, por mais de 200 anos. Numa clara demonstração do poder absolutista do rei, o livro V, o último da coletânea, tratava especificamente das sanções e penas aos criminosos. Sobre os crimes cometidos por menores, as Ordenações Filipinas traziam uma gradação e distinção das penas para os indivíduos até os 21 anos.

Aos menores de 7 anos não haveria nenhuma aplicação de pena, àqueles de 7 a 17 anos, não haveria condenação à morte e, por fim, aos jovens de 17 a 20 anos as penas seriam reduzidas em 1/3 em relação às aplicadas aos adultos. Observa-se que, marcado pelo absolutismo monárquico, o código filipino, refletia os costumes e mentalidade da época, tratando os menores de 7 anos como inimputáveis e, os maiores de 17 como quase adultos. Mesmo com medidas austeras, o código filipino sobreviverá à restauração do Estado português e à independência do Brasil, sendo substituído, apenas em 1830, após a outorga da Constituição de 1824, a primeira constituição brasileira.

Investido de ideias liberais, o século XIX, chega trazendo nova doutrina política, o Liberalismo que se fundamentava na propriedade e na primazia do indivíduo, reconhecendo sua autonomia e o único titular de seus direitos, contudo o código de 1830 conflitava com a Constituição.

No Brasil, mesmo recebendo rajadas do vento liberal e com um Estado a se consolidar, segundo Manoel Maurício de Albuquerque (1986), o imperador prima “pela manutenção da forma monárquica, preservava-se a estrutura fundamental do Estado escravista, como convinha ao bloco de classes hegemônicas, para garantir o poder necessário ao controle das diversas relações que mantinham a coesão social” (p.333). Apesar de todos os esforços, Pedro I, abdica do trono a favor de seu filho em 1831.

A despeito da crise política, o novo status do Brasil pedia mudanças no seu ordenamento jurídico. Assim, em 1830, por força do artigo 179 da Constituição Imperial, foi sancionado o novo código criminal tendo como base filosófica o Iluminismo. Esse código, diante das Ordenações Filipinas, trazia duas novidades em relação aos infratores menores de idade. Primeiro a inimputabilidade seria relativa para os jovens na faixa etária de 7 aos 14 anos, a punição seria dada de acordo com o discernimento sobre o bem e o mal; a segunda tratava do recolhimento dos infratores menores de 17 anos, após avaliação do discernimento para os que tinham até 14 anos, às casas de correção, limitado até a idade de 17 anos, e, não mais, para o mesmo espaço onde se encontrava adultos presos.

Nota-se que houve uma séria mudança no tratamento de menores delinquentes. Independente do crime praticado, o menor após avaliação se possuía discernimento, seria recolhido a um local separado do adulto. Criminoso? Talvez, mas jovem!

No último quartel do XIX, o lançamento da teoria da Evolução das espécies de Charles Darwin e a adequação dessa teoria à sociedade por Herbert Spencer atribuía aos brancos a superioridade racial. Somado a esse clima de eugenia e estarrecedor etnocentrismo, no Brasil, os escravos negros “ganhavam”, gradativamente, a liberdade e, finalmente em 1888, por meio de lei imperial, tornam-se livres. Ainda que de maneira rudimentar, os ventos do Liberalismo ganhavam concretude nas principais cidades brasileiras.

Envolto pelas ideias correntes na Europa, pela libertação da escravatura, a consequente falta de mão-de-obra para as lavouras de café e insipiente indústria e, ainda pela Proclamação da República em 1889, o cenário urbano sofrerá alterações, levando para as ruas, no final do XIX e primeiras décadas do XX, toda a sorte de desvalidos, entre eles crianças e adolescentes que para sobreviver cometiam pequenos delitos. Sobre esse pano de fundo,

Verifica-se o surgimento ou agravamento de crises sociais que outrora eram pouco relevantes no cotidiano da cidade. A criminalidade avolumara-se e tornara-se uma faceta importante daquele cotidiano, quer pela vivência dos fatos materiais, quer pela interiorização da insegurança que em maior ou menor grau atingia as pessoas. O aumento da ocorrência de crimes é acompanhado pelo aumento e especialização dos mecanismos de repressão, gerando uma maior incidência de conflitos urbanos, numa clara manifestação do agravamento das tensões sociais (SANTOS, 2000. p. 213-214).

Atentos às mudanças sociais e econômicas, os legisladores republicanos criam o código penal dos Estados Unidos do Brasil, em 1890. O novo código traz alterações na concepção de crianças e adolescentes. “Em seu artigo 27, rezava que:

Não são criminosos:

§ 1º Os menores de 9 anos completos;

§ 2º Os maiores de 9 e menores de 14, que obrarem sem discernimento” (QUEIROZ, 2011).

Atentemo-nos, pois ao alargamento da faixa de idade para inimputabilidade. Se o código de 1830 mencionava que os menores de 7 anos, mantendo o ordenamento do código filipino, seriam inimputáveis, o código republicano aumentava essa faixa em mais dois anos. A infância, como fase de vida, alargava suas fronteiras. Apesar disso, mantinha-se a avaliação biopsicológica para prescrição de penas para os crimes cometidos pelos maiores de 9 e menores de 14 anos, levando-nos a crer que a partir dos 14 anos, o indivíduo era tratado como adulto. Alargava-se a infância e encurtava-se a adolescência.

Estimulada pelos primeiros indícios de Direitos humanos em suas principais esferas[1], inspirada na criação da Justiça Especializada para o Menor Infrator dos Estados Unidos da América e as severas críticas, o Código de 1890, sofrerá alteração pela Lei 4.242 de 05 de janeiro de 1921 que, além da objetividade na penalização do jovem delinquente, abolia a avaliação do discernimento entre bem e mal para imposição da pena.

A Lei 4.242 de 1921, no seu artigo 3º, mantido pelo artigo 27 do Decreto 22.213 de 14 de setembro de 1922 que consolida as leis penais do momento, afirmava que os menores de 14 anos não seriam penalizados por crimes. A adolescência começa a ganhar contornos!

Não podemos deixar de mencionar que a Lei 4.242/21, no referido artigo, aponta que o menor de 14, não obstante a sua penalização, deveria prestar informações à autoridade competente sobre a situação social, moral e econômica dos pais ou responsáveis e, o estado físico, mental e moral do menor, após observação da autoridade, deveriam ser registrados e arquivados.

Tal procedimento, tendo em vista a efervescência da década de 20, não passava de controle por parte do Estado, pois nesse período, dada a crise social e o choque de interesses entre patrões e empregados via (proto)sindicatos, acreditava-se que, como disse certa vez o então Secretário de Segurança de São Paulo, Sr. Washington Luís, futuro candidato à presidência da República, “problema social é problema de polícia”! Como forma de evitar greves e coibir o movimento operário, tornou-se regra manter registros, nas delegacias de polícia, de todos os trabalhadores, brasileiros ou estrangeiros. A Lei Adolfo Gordo de 1907 punia com expulsão aquele que desestabilizasse a ordem social[2].

Com o Decreto 22.213/21 que ratifica a Lei 4.242/21, não somente o pai ou responsável seria “fichado” na polícia, os filhos também seriam. Corroborando com o controle do Estado sobre a população mais desfavorecida de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, encontramos médicos e sanitaristas impondo normas de convivência urbana. A “civilização” se impunha.

Na esteira do contexto sócio histórico da década de 20, o Brasil cria em 1923, o primeiro juizado de menores da América Latina. Por lavra do juiz José Cândido de Albuquerque Mello Mattos, primeiro juiz do referido juizado nasceu, em 1927, o primeiro Código de Menores do Brasil, que ficou conhecido como código Mello Mattos. Esse código além de mecanismo legal de atenção à criança e ao adolescente assumia “a assistência ao menor de idade, sob a perspectiva educacional” (QUEIROZ, 2011). Quanto à criminalização e penas, o código reafirma a legislação de 1921, no que tange à inimputabilidade dos menores de 14 anos.

Segunda Bruno Queiroz (2011), o código Mello Mattos, submetia à ação da justiça qualquer criança que se encontrasse em condição de pobreza. Nasce daí, a concepção e associação de Menor com o status de pobre, respectivamente. Ser pobre tornava a criança e o adolescente, elementos de alta periculosidade para a sociedade organizada.

De acordo com Bombarda (2011), o código Mello Mattos estabelecia o Estado protecionista e “tinha como objetivo principal ‘limpar’ das vistas da sociedade os menores delinquentes e os delinquentes em potencial, ou seja, aqueles que de acordo com os conceitos existentes na época se tornariam um perigo à sociedade”. A criança tinha que ser protegida, pois representa o futuro da nação.

Após forte crise econômica causada pela Primeira Grande Guerra Mundial, ascensão do nazi-fascismo na Europa e uma ditadura com facetas fascistas, no Brasil da década de 40 é instituído o Código Penal, vigente até os dias de hoje.

O Código Penal de 1940, no que concerne à responsabilização e criminalização da criança e do adolescente, reafirma as medidas protetivas da legislação anterior e dispõe em seu artigo 23 que os menores de 18 anos são inimputáveis, porque irresponsáveis. Nelson Hungria (1978, apud QUEIROZ, 2011), apresenta-nos que

(...) a delinquência juvenil é, principalmente, um problema de educação (...). É preciso socorrê-los, salvá-los de si próprios e do meio em que vegetam, ensejando-lhes aquisições éticas, reavivando neles o sentimento de vergonha e auto-censura (sic). Essa tarefa cabe ao Estado. (...) [as] sanções de caráter meramente reeducativo, devem ficar ainda nos casos de extrema gravidade, o menor de 18 anos, que comete ações definidas como crimes.

A inimputabilidade do menor de 18 anos, nessa época, apresenta com maior clareza a diferenciação entre crianças, adolescentes e adultos. Essa diferenciação alcançará seu ápice na década de 90 com a instituição da Lei 8.069 de 13 de julho de 1990, o chamado Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA.

O último ano da década de 70 e os anos 80 foram marcados por importantes mudanças no plano político-ideológico tanto no Brasil como no restante do mundo. Recém-saído de um Estado de Exceção ou, como ficou conhecido na prática, de uma ditadura militar, o Brasil, signatário de legislações internacionais que primavam sobre a liberdade e direitos humanos, especificamente o de crianças e adolescentes, sai da década de 80 com uma Constituição que garantiria a proteção à vida, à saúde, à liberdade, à dignidade, à educação e à cultura a todos os brasileiros.

Sobre as crianças e adolescentes, a Constituição cidadã, como ficou conhecida a Carta Magna de 1988, preconiza em seu 227º artigo que é dever da família, da sociedade e do Estado, cuidar e assegurar o bem estar de crianças e adolescentes. Esse artigo foi regulamentado pela Lei 8.069 de 13 de julho de 1990, que criou o Estatuto da Criança e do Adolescente. O ECA, como ficou mais conhecido, desvinculou a delinquência da pobreza, ao suprimir o termo “menor”, que por meio do Código Mello Mattos, relacionava menor com potencial condição para o crime, pelos termos criança e adolescente.

Ao realizar tal supressão, há uma tentativa de mudar a cultura que estabeleceu a equação: MENOR + POBREZA = DELINQUENCIA. E, ainda, determina a condição de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos. Ademais, demonstra o novíssimo código, a consolidação de que Infância e Adolescência  devem ser tratadas como fases de vida com maneiras de agir e pensar muito peculiares e completamente diferentes da fase adulta.

Diante do exposto, pode-se depreender que apesar de, desde os tempos coloniais ter havido uma regulamentação jurídica no Brasil sobre crianças e adolescentes, somente na década de 90 do século XX se consolida, com o Estatuto da Criança e do Adolescente, o discurso proferido tanto pela Psicologia, como pela Pedagogia e Medicina, de que a infância e adolescência referem-se a fases de vida que devem ser lapidadas e elaboradas, enfim, construídas e constituídas para possam garantir uma vida adulta bem formada.

No entanto, não basta uma concretização legal discursiva é necessária uma tomada de consciência pela sociedade como um todo para evidenciar uma verdadeira inclusão de crianças e adolescentes garantindo-lhes o prescrito no artigo 227 da Constituição Federal, o direito, com prioridade absoluta, “à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de coloca-los a salvo de toda forma de negligência, descriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (BRASIL, Const. Federal de 1988).

REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE, Manoel Maurício de. Pequena história da formação social brasileira. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

ARIÉS, P. História social da criança e da família. Trad. Dora Flaksman. 2. ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1981.

BATALHA, Claudio. O Movimento Operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.

BOMBARDA, Fernanda. A condição da criança e do adolescente em situação de risco no Brasil: Uma leitura histórico–legislativa. Disponível em http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/sem19/COLE_1810.pdf Acesso em abril 2011.

FROTA, Ana Maria Monte Coelho. Diferentes concepções da infância e adolescência: a importância da historicidade para sua construção. Estudos e pesquisas em Psicologia, UERJ, RJ, v. 7, n. 1, p. 147-160, abr. 2007.

SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Criança e criminalidade no início do século. In: PRIORE, Mary Del. (Org.). História das crianças no Brasil. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2000.

QUEIROZ, Bruno Caldeira Marinho. Evolução histórico-normativa da Proteção e responsabilização penal juvenil no Brasil. Disponível em http://artigos.netsaber.com.br/resumo_artigo_6912 Acesso em Ago. 2011.

 

 

 


[1] 1883 - Conquista dos Direitos sociais na Alemanha; 1888 – conquista da jornada de 08 horas de trabalho na Austrália; 1893 – conquista do voto feminino na Nova Zelândia; 1911 – congresso internacional de menores em Paris; 1924 – A declaração de Gênova sobre os direitos da criança é adotada pela Liga das Nações. Fonte: http://www.dhnet.org.br/tempo/tempo_br.htm Acesso em 27 abril de 2012.

 

[2] Essa Lei, no período de 1908 a 1921, expulsou do país 526 estrangeiros ( BATALHA, 2000).

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