04/10/2019

Transição entre os segmentos

INTRODUÇÃO

 

A Educação brasileira passa por um período de crise em todos os seus níveis, em decorrência de um projeto neoliberal que intenciona tornar esta um privilégio das classes dominantes, em um movimento de supressão da ideia de Educação enquanto um dos direitos garantidores da cidadania. Percebe-se que essa crise é estrutural quando, por exemplo, se institucionaliza o congelamento dos gastos públicos por 20 anos como fez o governo golpista de Michel Temer; ou seja, para além de projeto, existe um programa bem definido no sentido de retirada de direitos da classe trabalhadora, acirrando cada vez mais o arrocho e opressão de um sistema socioeconômico fundamentado nas desigualdades. Os efeitos desse programa refletem sobre todos os níveis da Educação, mas o tema a ser tratado nessa pesquisa, é a Educação Básica, mais especificamente o Ensino fundamental. Ainda, tornando o recorte mais restrito, discorrer-se-á sobre a transição dos educandos e educandas das séries iniciais para as séries finais, buscando possibilitar uma reflexão crítica concernente ao tema.

Dada a brevidade do artigo, a ênfase recairá sobre alguns aspectos específicos: primeiro, pontuando quais elementos que podem caracterizar essa transição enquanto ruptura, ou seja, desde já, descartamos a hipótese dessa transição ser uma continuidade; em seguida, discorrer sobre dois aspectos que avalia-se ser fundamentais para o bom entendimento sobre essa transição, que é, primeiramente, a própria estrutura organizacional entre ensino fundamental I e fundamental II, para assim, alcançar o segundo ponto, que é a diferença de identificação que o educando estabelece com essas duas etapas, vindo à tona as questões da afetividade e da motivação.

Destarte, a pesquisa é fundamentalmente a revisão da bibliografia específica, recorrendo-se a autores renomados no tema, o que traz legitimidade à investigação; mas também, recorrendo a novos trabalhos, como artigos científicos, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Ainda, define enquanto uma pesquisa qualitativa, por meio do método indutivo.

 

Transição das séries iniciais para as séries finais

 

A partir do Projeto de Lei nº 3.675/04, transformado na Lei Ordinária 11274/2006, o Ensino Fundamental passou a ter uma duração de 9 anos, a qual passou a considerar a antiga classe de alfabetização, outrora não obrigatória, como sendo o primeiro ano das chamadas séries iniciais, do primeiro ao quinto ano. Complementa-se o Ensino Fundamental com as séries finais, do sexto ao nono ano. Essas duas etapas se caracterizam também pelas diferentes organizações docentes, que nas séries iniciais, Fundamental I, é regida por professores ou professoras generalistas, e no Fundamental II, por professoras ou professores especialistas. Estas não são as únicas diferenças, entretanto, as dificuldades de transição de uma fase à outra dentro da etapa do Ensino Fundamental, giram essencialmente entorno dessa questão organizacional dos professores. Obviamente, pode-se eleger outras questões, mas o foco da presente pesquisa recai sobre a referida organização.

Parece-nos legítimo enfatizar a reflexão sobre a organização de docentes diferentes entre fundamental I e II, enquanto fator de ruptura ou de pouca integração entre as fases, tendo em vista que a próprias Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica enfatiza essa questão:

 

[...] não menos necessário é uma integração maior entre anos iniciais e anos finais do ensino fundamental. Há que se superar os problemas localizados da passagem das séries iniciais e das séries finais dessa etapa, decorrentes de duas diferentes tradições de ensino. Os alunos, ao mudarem de professor generalista dos anos iniciais para professor especialista dos diferentes componentes curriculares, costumam se ressentir diante das muitas exigências que têm de atender, feitas pelo grande número de docentes dos anos finais. Essa transição acentua a necessidade de um planejamento curricular integrado e sequencial e abre a possibilidade de adoção de formas inovadoras a partir do 6

º ano [...] (BRASIL, 2013, p. 120).

 

O mesmo teor de alerta sobre essa necessidade de integração entre as fases também se manifestará em outros documentos da Educação, como na Resolução CNE/CEB nº4/2010, em seu parágrafo segundo do artigo 18: “A transição entre as etapas da Educação básica e suas fases requer formas de articulação das dimensões orgânica e sequencial que assegurem aos educandos, sem tensões e rupturas, a continuidade de seus processos peculiares de aprendizagem e desenvolvimento”. Todos estes documentos nos falam sobre a necessidade e importância das continuidades no processo de ensino-aprendizagem; muitos deles até nos apresentam medidas a serem empregadas. Entretanto, o que se percebe é que o foco está na gestão dos sistemas de ensino local, na atuação do professor e nos comportamentos dos alunos, nunca se apresentando uma reflexão crítica sobre a própria estrutura organizacional da Educação Básica do país.

O que se deve evidenciar é que quando as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica exemplificam a dificuldades existentes em se ter em um ano um único professor, e no ano seguinte ter vários professores, é que o problema está no próprio currículo da Educação Básica. O mais adequado seria pensar um modelo de currículo que satisfizesse uma passagem de etapas e fases de forma integradora, como argumenta Souza:

 

[...] instituir uma nova concepção de escola fundamental destinada à educação de crianças e adolescentes de forma que agregue culturas profissionais historicamente diferenciadas – os professores primários e os professores secundaristas – com níveis diversos de formação e salários, status e modos próprios de exercício do magistério (2008, p. 268).

 

Perceba que a proposta é de rompimento com um modelo de currículo rijo, que não tem por centralidade o educando, mas antes, interesses externos à Educação, como por exemplo, as exigências profissionalizantes do sistema financeiro. Mas como essa possibilidade é mais complexa de acontecer, cabe no momento argumentar sobre as relações e interações próprias do âmbito escolar.

Nesta perspectiva, chega-se então à relação professor-aluno, que a literatura especializada exemplifica como sendo uma das contribuições mais marcantes dessa ideia de ruptura na transição entre fases. É muito evidente a dualidade pedagógica na transição do fundamental I para o fundamental II, tendo em vista que na primeira fase, vigora uma organização escolar totalmente diferente da fase seguinte, sendo recorrente grande distinção na organização espacial, no tempo de aulas, as metodologias e a própria diversidade de professores.

 

Abordar as dificuldades de aprendizagem apresentada pelos alunos de 5ª série há a necessidade de analisar a fase de mudanças constantes pelas quais enfrentam, a fim de clarificar que a dificuldade de aprendizagem não se dá de maneira isolada, mas abrangendo uma série de fatores que inviabilizam a assimilação e retenção das informações (GUSMÃO, 2001, p.8).

 

Algo pouco especificado na literatura é a formação do professor, que para os anos iniciais, exige-se formação em pedagogia, enquanto para os anos finais, a especialização em cada área de conhecimento. Esse fato pode fazer toda a diferença se considerarmos que a formação em licenciatura seja insuficiente, refletindo diretamente “[...] nos altos índices de reprovações ou evasão escolar. As diferenças entre as duas séries são percebidas nos objetivos, procedimentos, organização didática e também interação professor/aluno, entre outras” (ANDRADE, 2011, p. 16).

Nesta esteira, a formação insuficiente em licenciatura, “transforma” bacharéis em péssimos professores, que desconsideram, por exemplo, os significados das transições do sujeito educando, que está entrando na pré-adolescência, sendo uma preocupação manifestada na Resolução nº 7 de 14 de dezembro de 2010 sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais; ou ainda, como nos ensina Bossa: “[...] a adolescência é uma fase singular da vida devido à ocorrência simultânea de um conjunto de mudanças evolutivas na maturação física, no ajustamento psicológico e nas relações sociais” (1998, p. 227). Este é um momento na vida do sujeito de extrema importância e que a pedagogia e suas vertentes atribuem a grande atenção, o que não ocorre nas licenciaturas. Esta má formação, atrelada à pouca sensibilidade com os princípios pedagógicos no processo de ensino-aprendizagem, remete a uma relação de pouca afetividade entre professor e aluno.

Até o 5º ano, tem-se uma única professora, organizações de horários e espaço específicos, assim como dinâmica pedagógica e didática. Esse contexto já é privilegiado para o desenvolvimento de empatia; mas além disso, pode-se dizer que no curso de pedagogia, supostamente, o acesso a autores que trabalham a questão da afetividade, como Wallon e Vygotsky, é muito maior, o que traz a este professor um escopo mais consistente, reconhecendo a importância da afetividade no processo de ensino-aprendizagem. “A relação afetiva é fator marcante e grande responsável pelas diferenças no cotidiano do professor com as crianças, nas duas séries. Constatou-se que a demonstração de afeto é um traço decisivo na relação professor e aluno como responsável pelo desenvolvimento cognitivo” (PINTO, 2013, p. 8). No fundamental II, o ambiente se apresenta hostil para o desenvolvimento dessa relação de afetividade, marcadamente em decorrência da quantidade de professores, causando estranhamento aos alunos, que não estão acostumados com a nova organização. Ainda, aliado a isso, é flagrante a falta de integração e diálogo entre as disciplinas e programas escolares, o que é apontado por pesquisadores (DIAS-DA-SILVA, 1997) como sendo um fator para manifestação da indisciplina: “Parece evidente que o que está em jogo na passagem das 4

ª para as 5

ª séries é muito mais do que números de professores ou de disciplina. Está em jogo fazeres diferentes, está implicado saberes diversos, objetivos distintos, intenções e crenças (DIAS-DA-SILVA, 1997, p. 112).

A mesma autora continua apresentando quatro aspectos que contribuem em uma transição abrupta de uma fase a outra no ensino fundamental, sendo eles, o comunicativo, as exigências, a afetividade e a inconsistências entre os professores. Concernente à comunicação, a quantidade de professores e o tempo reduzido com os alunos, dificulta que canais de comunicação se estabeleçam, além de não haver diálogo entre os professores sobre as percepções referentes a cada aluno. Intimamente ligada a esse primeiro aspecto, está a afetividade, que, em decorrência da organização das disciplinas, o tempo de contato com cada turma é reduzido, diminuindo a possibilidade de estabelecimento de vínculos afetivos.

 

Considerações Finais

Talvez, a primeira coisa a se reconhecer é que questões e problemas concernentes à dificuldade de aprendizagem decorrentes de transições abruptas na Educação Básica, tem sua origem em uma confluência de fatores, como estruturais sistêmicos e de interações relacionais, assim como de comportamentos, no contexto escolar. Feito esse reconhecimento, abre-se caminho para reflexões sérias e comprometidas, mas que tem por foco questões mais pontuais como rotina escolar e relação professor aluno. A apresentação aqui neste artigo se deu neste sentido, de que a Educação depende da coesão entre estes dois níveis, o estrutural e o inter-relacional, possibilitando o entendimento de que a centralidade de uma escola, e da própria Educação, são as educandas e os educandos; e que finalmente, por conseguinte, fomenta a reflexão crítica contínua acerca do papel da escola contemporânea.

 

Referências Bibliográficas

 

ANDRADE, Mariza. Investigação sobre a transição dos alunos do ensino fundamental I para o ensino fundamental II. Trabalho de Conclusão de Curso – Universidade Estadual de Londrina, 2011.

 

BOSSA, N. A. A psicopedagogia no Brasil: contribuições a partir da prática. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1994.

 

BRASIL. Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014. Plano Nacional de Educação – PNE. Diário Oficial da União, de 26/06/2014, seção 1 edição extra, Brasília, 2014.

 

______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 1988.

 

______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica/Secretaria de Educação Continuada/Diretoria de Currículos e Educação Integral. Diretrizes curriculares nacionais da educação básica. Brasília: MEC, 2013.

 

______. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: MEC, 1996.

 

______. Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica. Resolução n. 4, de 13 de julho de 2010. Diretrizes curriculares nacionais gerais para a educação básica. Brasília: MEC, 2010.

 

______. Resolução n. 7, de 14 de dezembro de 2010. Diretrizes curriculares nacionais para o ensino fundamental de 9 anos. Brasília: MEC, 2010.

______. Ministério da Educação e da Cultura. Lei n. 5.692, de 11 de agosto de 1971.

Brasília: MEC, 1971. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5692.htm>. Acesso em: 20 agosto 2018.

 

DIAS DA SILVA, Maria Helena Galvão Frem. Passagem sem rito: as cinco séries e seus professores. Campinas. SP: Papirus, 1997.

 

GUSMÃO, Bianca Baraúna. Dificuldade de aprendizagem: um olhar crítico sobre os alunos de 5ª série. 2001. 43 f. Trabalho de conclusão de Curso – Universidade da Amazônia – 2001. Disponível em: http://www.nead.unama.br/site/bibdigital/monografias/dificul. Acesso em: 30 de agosto 2018.

 

PINTO, Celeida Belchior Garcia Cintra. O processo de construção do conhecimento permeado pelas relações interpessoais professor-aluno. Disponível em: http//www.publicacoesacademicas.uniceub,br/índex.php/face/article/viewfile/47/95. Acesso em: 30 de agosto 2018.

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