Tratado de Bolonha: Unificação do Ensino Superior na Europa provoca polêmica
Por Da redação, Universia
Até 2010, o Ensino Superior será profundamente impactado por uma série de mudanças surgidas a partir da Europa. Neste ano, cumpre-se o prazo para que se implantem as adaptações previstas no Tratado de Bolonha.
Firmado em 1999 por ministros ligados à Educação de 29 países do velho continente, o documento prevê a criação do Espaço Europeu de Ensino Superior - uma região em que os currículos serão unificados, os créditos multi-validados e os estudantes terão livre mobilidade. Na mira do acordo, já em andamento, o aumento da competitividade européia no cenário mundial.
Não é difícil compreender o que levou os governos europeus a se movimentarem nesta direção. Em meados da década de 90, às portas da consolidação da União Européia, o continente registrava índices de desemprego que passavam a casa dos 10%, mesmo em países considerados ricos , como a Alemanha e a França - números que, ainda hoje, são uma realidade, segundo dados da UE. Ao mesmo tempo, enquanto os EUA cresciam como potência econômica e política, nações como Índia e Japão mostravam as garras para o mercado mundial. Era preciso mudar o cenário.
Este processo culminou, em 1999, na reunião da qual resultou o Tratado de Bolonha, um documento que levasse os países europeus a se unir e criar uma estratégia de fortalecimento do bloco econômico a partir da Educação Superior. "Estrategicamente, eles sabem onde querem chegar. Querem ser a economia mais competitiva no mundo baseada não em produção, não em tecnologia, mas no conhecimento. E é aí que está o grande diferencial", explica a presidente do Faubai (Fórum de Assessorias das Universidades Brasileiras para Assuntos Internacionais), Luciane Stallivieri. "Não é que a Europa não queira se unir com o resto do mundo, não é que rejeite a integração global, mas sabe que precisa se fortalecer internamente - e decidiu fazer isso na base do conhecimento."
Embora a estratégia de unidade para ampliação da competitividade do bloco no cenário global seja uma clara tendência no continente europeu, o Tratado de Bolonha (clique para ler a íntegra do documento) ainda está longe de ser uma unanimidade. Levando a questão para o confronto das idéias, o debate ainda sofre para penetrar definitivamente nas entranhas, por muitas vezes impenetráveis, do meio acadêmico. Mais do que isso, corre o risco de criar uma condição de isolamento em relação ao resto do mundo. Ou seja, ao mesmo tempo em que pode permitir uma circulação de conhecimento mais rápida e ampla, pode não conseguir estendê-la para além dos seus limites.
"De certa forma, o processo de Bolonha é um facilitador do rompimento de fronteiras educacionais, na medida em que homogeneíza a formação em praticamente todo o continente europeu. Ele é, do ponto de vista estratégico, inclusive, um forte elemento de apoio à União Européia e à unificação dos paises do ponto de vista educacional", afirma o reitor da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), Lúcio José Botelho. "No entanto, ainda há resistência de alguns países em discutir o tema. Algumas instituições latino-americanas são contrárias a ele, pois pode significar uma atratividade a mais para a ida do estudante."
É difícil, ainda, especular sobre os demais objetivos do Tratado de Bolonha. No entanto, alguns indicadores mostram que há uma série de outros problemas que precisam de soluções emergentes dentro da realidade da União Européia. É inegável que há, em boa parte do continente, um déficit de jovens, que não preenchem todas as vagas do Ensino Superior. Levando em conta os dados demográficos atuais da região, o estudo "The Human Capital Management 2005", elaborado pela IBM Business Consulting Services, apontou que a população está envelhecendo rapidamente e que, dentro de 20 anos, o número de pessoas na faixa de 50 a 64 anos aumentará 25%. Ao mesmo tempo, o grupo que abrange dos 20 a 29 anos diminuirá 20%
"Um dado importante do cenário atual é que a população européia está envelhecida e os alunos estão saindo do continente. Então é preciso mexer no sistema para torná-lo atraente para as gerações mais novas ", acrescenta Luciane. Ao mesmo tempo, outros jovens passam ao largo da graduação, pois não estão dispostos a enfrentar cinco anos para completar seus estudos - quiçá 10 ou 12 anos para alcançar o título de Doutor. "Um colega de Portugal disse que os jovens portugueses não querem mais estudar. Eles estão indo direto para o mercado de trabalho e dispensando os estudos. As universidades começam a se preocupar com isso e é uma preocupação dos ministros da Educação Superior."
O caminho escolhido
O cenário, portanto, mostra uma Europa dividida entre a crescente competição global e a queda significativa do número de jovens qualificados para se tornar bons profissionais. Assim, após um longo período de debates, decidiu-se pela criação de um espaço único em que os estudantes pudessem transitar livremente, validando seus créditos. Paralelamente, os diversos níveis foram compactados, reduzindo o tempo de formação. Nos novos moldes, os estudantes podem alcançar o título de Doutor em oito anos - no formato chamado de 3+2+3 (conheça os detalhes clicando no link "O que muda no sistema europeu" no menu à direita).
"Sabemos que a Europa tem muitas instituições com graduação boa e doutorado também, mas não tem grande experiência no mestrado. No entanto, o processo de Bolonha ignora isso, ao compactar a formação. Esses oito anos significam, na minha opinião, um tempo muito curto para ser compatível com o avanço do conhecimento no mundo de hoje", opina Jorge Guimarães, presidente da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). "Esse século seguramente vai registrar um desenvolvimento científico como jamais tivemos ao longo de toda a história da humanidade. O caminho escolhido parece um pouco fora do que seria razoável esperar."
Embora se reconheçam os problemas, a solução ainda é fortemente questionada por especialistas. Para muitos, ela não resolve a questão e ainda capta estudantes de outros países - o que poderia, teoricamente, transferir o problema. "O sistema europeu de Ensino Superior, sabidamente, tem hoje mais vagas do que candidatos. Então, na visão das pessoas que fazem esse tipo de critica, o sistema criaria uma espécie de cooptação de estudantes estrangeiros pela agilização do processo de formação", explica Botelho, da UFSC.
O ponto de chegada
A discussão política em torno da implantação do Tratado de Bolonha tem ainda mais pontos a destacar - em especial para países como os latino-americanos. Como evitar a fuga de cérebros para o atrativo novo sistema europeu? Como promover a cooperação internacional e a mobilidade estudantil com um sistema tão diferente e competitivo? Para os países europeus: como evitar que o foco da graduação se volte exclusivamente para o mercado, dificultando a produção e circulação de conhecimento?
Ainda que estejamos a apenas quatro anos do cumprimento do prazo para implantação do sistema, é inegável que os debates ainda se estenderão e se aprofundarão nestas e em outras questões. "Sabemos, pelos nossos colegas portugueses e espanhóis, que não é uma decisão tão tranqüila no âmbito europeu também, que há muita controvérsia. É uma discussão importante, necessária para a realidade européia, e que vai ter implicações no seu relacionamento com outras regiões, como é o caso do Brasil e da América Latina - mas que não está acabada", finaliza o presidente da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior), Paulo Speller, que também é reitor da UFMT (Universidade Federal do Mato Grosso).
Esta matéria é a primeira parte de um especial que pretende detalhar as discussões em torno do Tratado de Bolonha. Nesta etapa, trataremos das implicações políticas, as mudanças efetivas no atual sistema e o impacto da implantação do processo para o Brasil. Para saber os temas das próximas matérias, veja o menu à direita.