09/01/2017

UM DIÁLOGO A RESPEITO DA FORMAÇÃO DE EDUCADORES A PARTIR DE PAULO FREIRE E GRAMSCI

UM DIÁLOGO A RESPEITO DA FORMAÇÃO DE EDUCADORES A PARTIR DE PAULO FREIRE E GRAMSCI

 

Patricia Rutz Bierhals[1]

Fernanda dos Santos Paulo[2]

 Elizane Pegoraro Bertineti[3]

Liliane Rutz Bierhals[4]

 

Resumo:

O presente texto[5] aborda a formação docente enquanto formação na perspectiva da Educação Popular num diálogo entre Freire e Gramsci. Trazemos a discussão da educação enquanto espaço de disputa hegemônica dos interesses da classe dominante, sobretudo no processo de globalização do capital e diante disto, os desafio para nós que  lutamos pela Educação Popular e pela Educação Popular do Campo, através da formação político-pedagógica de educadores com vistas a emancipação humana.

Palavras-chave: Formação de Educadores; Educação Popular; Educação Pública;

Introdução

Nos últimos anos, cada vez mais tem estado em pauta nos espaços sociais a importância da Formação de Educadores preparados para estarem trabalhando junto das classes populares brasileiras. O processo de globalização tem supervalorizado o progresso científico e tecnológico. A velocidade acelerada em que essas transformações acontecem faz com que surjam novos conhecimentos, produzidos e reproduzidos nas sociedades, no campo econômico, social, cultural e educacional, também em velocidade estonteante.

 Apesar dos avanços em diversas áreas do conhecimento, poucos reflexos significativos desse progresso científico se percebem na área da Educação Popular, sobretudo, nos cursos de formação docente, o que traz impedimentos ao fortalecimento das classes populares.

Refletindo com Mochcovith (1990) sobre as ideias de Gramsci, dizemos que a dominação político-ideológica das classes subalternas impede que ocorram transformações no pensamento e nas formas de agir no cotidiano das pessoas, o que Freire reafirma ao explicar que essa forma de dominação produz um consenso social que naturaliza a direção dada pela classe dominante, Freire (1996), e faz com que a concepção mecanicista de educação vista novas roupagens.

 Na proposta de um curso de formação na perspectiva da Educação Popular que acredita na capacidade transformadora da escola se percebe esse espaço como um ambiente que retrata grandes desigualdades, mas que também tem o poder de elevar as classes subalternas a uma condição de conhecimento e reconhecimento de si, enquanto classe social que possui a habilidade de governar aqueles que o governam a partir de sua elevação cultural.

Do ponto de vista da tecnologia, Pinto (2005) enfatiza que os instrumentos e as máquinas criadas pelos trabalhadores e que deveriam contribuir para elevação cultural das massas, são constituídos por conhecimentos científicos e formulações teóricas, que em muitos aspectos podem representar um dos maiores desafios para a Educação Popular, como por exemplo, se tratando dos cursos de licenciatura de EAD para educadores que atuam no contexto do campo ou da cidade com projetos populares.

Freire (1996),traz que a formação docente articulada à práxis pode vir a contribuir para o processo de transformação social na ótica de uma educação pública popular. Com isto, é importante não dissociar o saber historicamente acumulado, dos saberes populares. Bem como, ainda que havendo inúmeros limites, é indispensável que toda possibilidade de formação emancipadora seja ser efetivada.

Sendo assim, a preparação para trabalhar com esses saberes, no viés da Educação Popular dá-se na relação ação-reflexão-ação. Desse modo, enfatizando a relevância do pensamento de Pinto (2005) destacamos que cabe a Educação Popular atribuir a devida importância do desenvolvimento cientifico e tecnológico, enquanto ferramenta de emancipação que deve estar a serviço das classes subalternas, para que essas possam transformar o conhecimento do senso comum em um saber teórico-prático formulado de maneira crítica e consciente, além de poder estar articulado à experiência produzida na forma de saber popular, pois, o contrário contribui para que a posse e o serviço de tais tecnologias permaneçam favorecendo a burguesia a manter sua hegemonia.

 Nesse entendimento, a realidade em que nos encontramos não é nada ingênua e se explica historicamente pelo modo produção capitalista dominante, o qual produz uma forma de desemprego estrutural, reflexo da globalização do comércio internacional. Que conforme define Freire (1996),

O desemprego no mundo não é como disse e tenho repetido uma fatalidade. É antes o resultado de uma globalização da economia e de avanços tecnológicos a que vem faltando o dever ser de uma ética realmente a serviço do ser humano e não do lucro e da gulodice irrefreada das minorias que comandam o mundo. (FREIRE, p.48-49).

Os modos de produção no capitalismo foram se modificando ao longo da história e estabelecendo diferentes formas na relação entre capital e trabalho, mas sempre buscando mecanismos de manutenção de sua hegemonia e estes estão presentes nos efetivação da formação docente, O sistema socioeconômico que visa o lucro acima de todas as coisas continua utilizando como fator preponderante o disciplinamento da força-de-trabalho, bem como sua exploração em troca da manutenção do emprego. Nesse sentido, a ênfase dos cursos profissionais é a preparação para o mercado de trabalho e não para a transformação social, como propunham: Freire(2006), Gramsci (2006) e como bem coloca Marx(1989).

Logo, afirmamos com Saviani (2009) que para melhor compreender a formação docente é necessária uma atitude filosófica de reflexão da base material da sociedade cuja história está sendo continuamente reconstruída, e para a qual a história sendo dialética nos serve de método para reinterpretar esse fenômeno, buscando nos elementos contraditórios as manifestações que ao mesmo tempo revelam e ocultam a essência dessa realidade. Assim, a Educação Popular e a formação profissional compreendida como instrumento de transformação é capaz de dar condições ao ser humano de conhecer sua situação existencial concreta e intervir nela no sentido de que os valores humanos passem a ser superiores aos econômicos.

De acordo com o pensamento de Marx e Engels (1983), no modo de produção capitalista o sistema de Ensino está estruturado para atender as necessidades do mercado, ou seja, a força de trabalho e a capacidade produtiva do trabalhador são exploradas a fim de gerar mais-valia, portanto, o trabalhador para gerar mais-valia tem que possuir concreta qualificação para o desempenho do trabalho. Desse modo, a qualificação pensada apenas como forma de integrar o trabalhador ao sistema produtivo “reproduz o sistema dominante, tanto a nível ideológico quanto técnico e produtivo.” (Marx, Engels, 1983, p.7).

Ao criticar o caráter ideológico desse sistema de ensino Marx e Engels (1983), colocam em destaque que esse modelo de educação conduz a naturalização da alienação da força de trabalho, e propõe que a relação entre a divisão do trabalho e processos educacionais seja pensada como elemento para se obter uma “Educação para a Transformação”, ou seja, uma Educação que garanta a Emancipação social e humana ( MARX, 1970).

No modo de produção capitalista, a “Educação” passou a ser uma “mercadoria” definida a partir dos fatores econômicos para sustentação do sistema capitalista. Portanto, nessa visão a “Educação também Capitalista” passa a se guiar apenas pelas necessidades empresariais, cujos valores prevalecem à lucratividade e o consumismo. No dizer de Freire ( 1996, 1999), essa educação não possibilita o processo de humanização.

Embora essa forma de relação é mais visível em Instituições Privadas de Ensino, pois nestas a “Educação” é um produto a ser vendido aos alunos que são considerados como clientes. Nas escolas públicas a mesma lógica está instaurada, pois ainda que de forma mascarada, estas tem a função de preparar mão de obra para o mercado, o que vem precarizando a qualidade educacional nestes espaços.

Nesse contexto, os cursos de formação de professores tem conotação conservadora, dando origem a um novo tipo de escola, a "mercoescola[6]".

Nos moldes da escola atual, há duas grandes vertentes: uma que busca a “qualidade total”, e que impõe ao Brasil os modelos europeus de educação, a partir de visões como: meta para atingir qualidade total igual para todos. Essa vertente, segundo Azevedo (2007) “é uma reconversão para o mercado”. Esta visão é voltada para formação de educadores para os quais a educação busca manter a estrutura do capitalismo, com a intencionalidade de introduzir na escola valores de cunho empresarial.

A outra vertente contrapõe-se a estrutura educacional voltada para a “mercoescola[7]”, pois é a favor da realidade das comunidades e da Educação Popular, acreditando que é possível construir um mundo melhor a partir do respeito e da solidariedade, ou seja, dentro de um movimento de ressignificação da educação.

Neste sentido, o modelo de Educação que se coloca numa visão emancipatória oferece o ensino público, gratuito e obrigatório para todas as pessoas, unindo conhecimento científico e prático por um caminho crítico, pois, é contrária a mercoescola que se vende e se modifica conforme os valores do mercado.

Ao observarmos em nossas experiências percebemos que muitos fatores sociais, políticos e econômicos, têm conduzido a Escola Pública para também estar à mercê do mercado, pois, esta sofre constantemente as pressões do sistema socioeconômico vigente. Um exemplo bastante pertinente é a crescente ocupação de territórios camponeses pelo território do agronegócio, Fernandes (2008), que tem diretamente influenciado as organizações dos espaços de trabalho nas escolas públicas no campo. A questão acima mencionada ainda não faz parte do currículo dos cursos de formação docente, em sua maioria, o que distancia o trabalho da educação, impedindo que os profissionais da educação tenham clareza da ideologia que perpassa as relações sociais em que estão inseridos, inviabilizando as possibilidades de conscientização e transformação social.

Diante dessa realidade notamos que os programas para a formação de educadores, sejam do campo ou da cidade, muitas vezes são reformulados nos ditames da valorização do capital. E, a partir dessa concepção as mudanças na relação entre educação e trabalho, são destinadas a manutenção dos intelectuais da classe dominante.

 Historicamente, a educação escolar e não escolar, mantiveram um nítido sistema de divisão do trabalho constituído por diferentes níveis de formação e no qual se opera uma divisão entre o trabalho material e intelectual, talvez por isso muitos professores ainda não se reconheçam como classe trabalhadora.

A classe dominante recebe uma educação para manter o sistema e as classes populares para estar qualificada e em condições de vender sua força de trabalho, mantendo assim, o sistema socioeconômico vigente que desrespeita o ser humano na sua totalidade, desde a formulação dos conteúdos formativos.

Analisando essa situação a partir das ideias de Gramsci explicadas por Mochcovith (1990), consideramos que a formação de intelectuais orgânicos nas classes populares é uma possibilidade de libertação dos mesmos da situação de oprimidos, pois, tanto a classe dominante (opressores) quanto à dominada (oprimidos\subalterna) possuem intelectuais que pensam a função social da escola considerando os interesses dos indivíduos enquanto singularidade e coletividade. Portanto, as duas vertentes explicitadas acima estão relacionadas a tipos diferentes de intelectuais.

Neste sentido, no que tange ao papel dos intelectuais no processo da formação de educadores é preciso distinguir os aspectos que caracterizam os intelectuais que são contrários ao modelo de educação mercantil. Sabe-se que os intelectuais da classe dominante (opressores) constroem ideologias voltadas a suas intenções. Estes são os intelectuais tradicionais que buscam transferir a sua ideologia via-escola. Já na classe “subalterna” há intelectuais orgânicos mais populares que constroem um pensamento diferente dos outros, e que buscam uma contra hegemonia.

Respaldamos em (Morrow; Torres, 2004) ao referenciar Gramsci, para dizer que a primeira tarefa da política educativa deve ser a de substituir os intelectuais tradicionais por intelectuais orgânicos. A segunda tarefa é assegurar que este “processo de maturação prossiga suavemente, pois, ele depende da ação ativa de auto-dedicação de uma classe à sua própria auto-educação. Para o proletariado, essa atitude significa o domínio das técnicas segundo as quais “trabalhadores não qualificados tornaram-se qualificados”, e de uma forma mais abrangente, na qual a auto-transformação permita a “cada cidadão governar”. Buscamos em Freire[8] (1986) um conceito que possa traduzir o sentido que atribuímos ao Intelectual Orgânico e a importância de sua atuação intelectual considerando a perspectiva de Gramsci:

Para mim o caminho gramsciano é fascinante. É nessa perspectiva que me coloco. No fundo [...] tudo tem a ver com o papel do chamado intelectual, que Gramsci estuda tão bem e tão amplamente. Para mim, se a classe trabalhadora não teoriza a sua prática é porque a burguesia a impede de fazê-la. Não porque ela seja naturalmente incompetente para tal. Por outro lado, o papel do intelectual revolucionário não é o de depositar na classe trabalhadora, que também é intelectual, os conteúdos da teoria revolucionária, mas o de, aprendendo com ela, ensinar a ela. Neste ponto voltamos ao que já disse a respeito da diferença do método do educador reacionário e do revolucionário. Este, ao se tornar um pedagogo da revolução, e foi isso que Amílcar Cabral fez, faz a possível para que a classe trabalhadora, apreenda o método dialético de interpretação do real. (FREIRE, 1986, p.54).

Ainda auxiliadas em Freire[9] , ratificamos que:

Uma das tarefas do chamado intelectual que a gente pode ser, uma delas é exatamente ver que, entre o tema “A” proposto pelo grupo e o tema “B” haveria um tema “A-B”. Precisaríamos de algo que nos possibilitasse a passagem da fronteira entre o “A” e o “B”. E isso é um dos trabalhos do intelectual, do educador comprometido. É ele ver como é possível viabilizar a compreensão mais crítica da temática proposta pelo povo. (Freire & Betto, 1985, p.14-15)

A partir deste amplo desafio instigado por Freire (1985) cabe a nós professores/ educadores que lutamos pela Educação Popular e pela Educação Popular do Campo, pela inserção de uma proposta política e pedagógica que seja capaz de romper com a fragmentação e a reprodução do conhecimento. Tomando como desafio a formação político-pedagógica de educadores com vistas à emancipação humana.

REFERÊNCIAS:

AZEVEDO, Jose Clovis. Reconversão cultural da escola: mercoescola e escola cidadã. Porto Alegre: Sulina, 2007.

FERNANDES, Bernardo Mançano. Educação do Campo Território Camponês no Brasil. In SANTOS, Clarice Aparecida dos. (org.). Educação do Campo:Campo-políticas públicas-educação.Brasília:Incra; MDA, 2008.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

________. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. 6ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

_________. Educação, um sonho possível. In: BRANDÃO, Carlos Rodrigues (org.)

_________. O educador: Vida ou Morte; escritos sobre uma espécie em perigo. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1982. 

_________, Paulo; SHOR, Ira. Medo e Ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

_________.; BETTO, Frei. Essa escola chamada vida. Lugar: Paz e Terra, 1985.

GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcire, volumoe 2.4. ed.- Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

MARX & ENGELS. Textos sobre educação e Ensino. São Paulo: Editora Moraes, 1983.

MARX, Karl. A questão judaica. 2 ed. Tradutor: Artur Morão. [s.l]: LusoSofia:Press, 1989.

MOCHCOVITCH, Luna Galano. GRAMSCI E A ESCOLA. 2ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1990.

MORROW, Raymond A; TORRES, Carlos Alberto. GRAMSCI E A EDUCAÇÃO POPULAR NA AMÉRICA LATINA. Percepções do debate brasileiro. Canadá: Universidade Alberta; Los Angeles, EUA: Universidade da Califórnia – Los Angeles.

PINTO, Álvaro Vieira. O conceito de tecnologia. Volume I. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005.

SAVIANI, Dermeval. EDUCAÇÃO. Do senso comum à consciência filosófica. 18ª ed. Revisada. Campinas- SP: Autores Associados, 2009.

 

[1] patriciabierhals@yahoo.com.br. Pedagoga; Mestra em Educação; Doutoranda.

[2] fernandaeja@yahoo.com.br. Pedagoga; Mestra em Educação; Doutoranda.

[3] elizane81bertineti@hotmail.com . Pedagoga; Mestra em Educação.

[4] lilik.rs@hotmail.com . Graduada em Serviço Social; especialista em Psicipedagogia.

[ Este texto foi apresentado e consta nos anais do evento: XIV Fórum de Estudos de Paulo Freire que aconteceu em 2012 em Erechim/RS.

[6] AZEVEDO, Jose Clovis. Reconversão cultural da escola: mercoescola e escola cidadã. Porto Alegre: Sulina, 2007.

[7] Azevedo, Jose Clóvis de, 2007, pág. 97.

[8] FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e Ousadia: o cotidiano do professor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

[9]LIVRO: Essa escola chamada vida.

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